Negócio Jurídico - I

Introdução


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Negócio jurídico é todo fato jurídico que consiste em uma declaração de vontade à qual o ordenamento jurídico atribuirá os efeitos designados como desejados, desde que sejam respeitados os pressupostos de existência, os requisitos de validade e os fatores de eficácia (impostos pela norma jurídica). É, assim, a expressão máxima do princípio da autonomia privada, a qual dá a liberdade ao indivíduo de reger sua vida pelas normas particulares que desejar. Para isso, a vontade do Estado deve ser igualmente respeitada. Conclui-se que o negócio jurídico é formado pela vontade do indivíduo somada à vontade do Estado.

O negócio jurídico pode criar, modificar ou extinguir direitos. A doutrina construiu os planos de análise do negócio jurídico, esquema chamado de escada ponteana, uma vez que foi trazido para o Brasil por Pontes de Miranda. Os planos de análise são a existência, validade e eficácia.

Existência


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O Plano da Existência é dos elementos que integram a essência de uma coisa, sua composição. Neste plano específico, não se pergunta pela validade ou eficácia de um negócio jurídico. Basta somente a realidade de sua existência.

Não é unânime entre os doutrinadores quais elementos se situam no plano da existência. Para Carlos Roberto Gonçalves os elementos são:

  • Declaração de vontade;
  • Finalidade negocial, e
  • Idoneidade do objeto.

A Declaração de vontade figura como elemento de existência porque não pode haver negócio jurídico se a vontade não for exteriorizada. É precisamente a declaração, segundo Caio Mário (1913-2004), que torna a vontade conhecida.

A manifestação ou declaração da vontade, como sabido, pode ser:

  1. Expressa, caso ela se dê de modo explícito, permitindo o conhecimento imediato;
  2. Tácita, caso seja deduzida pelo comportamento do agente, ou
  3. Legal, quando não se dá de maneira expressa, mas a lei considera presente dados alguns comportamentos do agente.

Ainda sobre a Declaração de vontade, que é um dos elementos da existência do negócio jurídico, devemos tratar de dois aspectos importantes: o silêncio e a reserva mental.

Para que haja uma Declaração de vontade, via de regra, vimos que é sempre necessária alguma manifestação, comportamento ativo do agente ou uma presunção em virtude da lei.

Assim, é difícil concluir que o silêncio tenha alguma relevância para efeitos de declaração de vontade. Porém, veremos, o silêncio é de grande relevância aos efeitos no negócio jurídico. A título de exemplo, vejamos o art. 111 do Código Civil Brasileiro de 2002:

Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa.

Fica claro, assim, que o silêncio pode ser interpretado como manifestação de vontade quando a lei lhe atribui este efeito, conferindo existência ao negócio jurídico.

Com relação à reserva mental, trata-se de uma situação juridicamente prevista em que um dos declarantes oculta a sua intenção, não desejando, no seu íntimo, o efeito que declara externamente.

Neste caso, se a outra parte desconhecer a reserva mental, ou seja, se não sabia dos desígnios íntimos do outro agente, que são contraditórios à declaração de vontade, não há repercussão jurídica alguma.

Por outro lado, se a pessoa a quem foi dirigida a declaração conhece a reserva mental, acaba configurando-se, segundo Moreira Alves, uma hipótese de ausência de vontade, e, por conseguinte, de inexistência do negócio jurídico.

Por fim, Carlos Roberto Gonçalves cita como exemplo o casamento celebrado por autoridade incompetente em razão da matéria, como um delegado de polícia. É o nada jurídico, é inexistente.

O mesmo raciocínio se aplicava, antes das transformações recentes, ao casamento de pessoas do mesmo sexo. Este tipo de casamento, antes da aplicação da hermenêutica constitucional pelo STF ao tema, era considerado inexistente.

Além da declaração de vontade, figura como elemento de existência do negócio jurídico a finalidade negocial. Finalidade negocial traduz-se no propósito de adquirir, conservar, modificar ou extinguir direitos.

Por fim, temos a idoneidade do objeto, que seria a apresentação dos requisitos ou qualidades que a lei exige para que o negócio produza os efeitos desejados.

Um exemplo é o negócio jurídico do mútuo. No mútuo, segundo o art. 586 do Código Civil, só se consideram objetos idôneos as coisas fungíveis, e para o comodato, segundo o art. 579, do Código Civil, as infungíveis. 

Validade


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O plano da validade se situa no campo dos requisitos do negócio jurídico, ou seja, das condições necessárias para o atingimento de um determinado fim. O art. 104 do Código Civil de 2002 estabelece que a validade do negócio jurídico requer:

  •  Agente capaz;
  •  Objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e
  •  Forma prescrita ou não defesa em lei.

Quanto ao agente capaz, fala-se da capacidade de fato ou de exercício, que somente alguns detém. Esta é aquela que habilita o agente a exercer direitos e obrigações na vida civil. Não se trata da capacidade de gozo de direitos, uma vez que esta é comum a toda pessoa humana, é universal.

Quanto à incapacidade absoluta, é importante notar que com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), a pessoa com deficiência não é considerada mais absolutamente incapaz. A incapacidade absoluta, então, passa a ser exclusividade dos menores de 16 anos.

Ou seja, o agente absolutamente incapaz, no caso, o menor de 16 anos, não pode exercer por si só os atos da vida civil, sob pena de nulidade, dado que ser agente capaz é um dos requisitos do plano de validade do negócio jurídico.

Além do agente capaz, o negócio jurídico, para que seja válido, requer a presença de um objeto lícito, possível, determinado ou determinável. Vamos ver cada um destes conceitos.

Segundo Carlos Roberto Gonçalves, objeto lícito é aquele que não atenta contra a lei, a moral ou os bons costumes. Assim, se o objeto do contrato é imoral, não é raro os tribunais aplicarem o princípio de que, ninguém pode se valer da própria torpeza, ou então, se ambas as partes agiram com torpeza, malandragem, nenhuma delas pode exigir, por exemplo, em um contrato, a devolução da importância que pagou.

Com relação à possibilidade, ou seja, objeto possível, tem-se que uma eventual impossibilidade pode se dar por razões físicas ou jurídicas.  A impossibilidade física nada mais é do que um evento que não pode acontecer em virtude das leis físicas ou naturais. 

Por exemplo, se o Luan Santana resolve colocar em termos contratuais o que ele canta, “Dou-lhe o sol, dou-lhe o mar, e como contrapartida espero obter seu coração”, tal contrato seria, obviamente, inválido por se tratar de objeto impossível; tanto quanto exagerado. Imagina, o sol e o mar?! 

Já a impossibilidade jurídica se dá quando o próprio ordenamento jurídico expressamente veda a realização de um negócio jurídico, com relação a determinado bem. Como, por exemplo, a herança de pessoa viva.

Por fim, diz-se do objeto que deve ser determinado ou determinável. Por essa razão, por exemplo, é permitida a venda de coisa incerta, em que indicação se dá pelo gênero ou pela quantidade.

Já como último requisito de validade do negócio jurídico, temos a forma. No nosso direito, a regra é de que a forma é livre. Podem as partes escolher se celebram um negócio jurídico por instrumento público, particular ou verbalmente. Com exceção dos casos em que a lei determina uma forma específica essencial para validade do negócio, como ordena o art. 107 do Código Civil de 2002.

Exemplo clássico é a compra e venda de bem imóvel que custe mais de 30 salários mínimos, caso este em que se exige escritura pública. Não atendido este requisito legal, considera-se nulo o negócio jurídico, nos termos do art. 166, IV do Código Civil de 2002.

Eficácia


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Ao analisarmos este plano, não trataremos de toda e qualquer eficácia prática do negócio, mas sim da eficácia jurídica. Especialmente, da sua eficácia própria ou típica, isto é: da eficácia dos direitos manifestados como desejados.

Geralmente, a doutrina costuma tratar o plano da eficácia sob o título de elementos acidentais do negócio jurídico, que são basicamente:

  •  Termo;
  •  Condição, e
  •  Modo ou encargo.

Elementos acidentais, segundo Carlos Roberto Gonçalves, são aqueles que se acrescentam à figura típica do ato para mudar-lhes os respectivos efeitos. São cláusulas que, inseridas, tanto por declaração unilateral quanto pela vontade das partes, acarretam modificações na eficácia do ato.

Vamos examinar cada um deles, a começar pela condição.

condição é prevista no Código Civil de 2002, em seu art. 121, como a cláusula que subordina o efeito do ato jurídico a evento futuro e incerto. Ela se estabelece exclusivamente por vontade das partes, jamais por imposição de dispositivo legal.

Importante destacar que nem toda condição tem o poder de influir na eficácia de um negócio jurídico. Para que ela tenha esse poder é necessário que ela seja lícita, ou seja, não contrarie a lei, a ordem pública e os bons costumes, sob pena de gerar nulidade do negócio jurídico. São, ainda, vedadas as condições que privam as partes de todo o efeito do ato ou que o sujeitam ao puro arbítrio de uma das partes.

Além de lícita, a condição tem que ser possível, não havendo nenhum impedimento de ordem física ou jurídica para seu cumprimento. Já com relação aos efeitos da condição, há uma divisão bastante importante entre condição resolutiva e suspensiva.

Condições suspensivas são aquelas que, enquanto não se verificarem, impedem que o negócio jurídico gere efeitos. Podemos usar como exemplo o pai que promete dar um carro a seu filho se ele passar no vestibular.

Já as condições resolutivas verificam-se quando o direito transferido pelo negócio jurídico é resolvido, extinto, diante da ocorrência de um evento futuro e incerto. Outro exemplo: um pai que combina com o filho que vai lhe dar uma mesada até que ele se case. Neste caso, o filho já está gozando da mesada, que será extinta caso ele venha a se casar.  

Contudo, existem alguns negócios jurídicos que não admitem condição. Via de regra, a condição é possível nos atos de natureza patrimonial, com algumas exceções. Dentro dessas exceções está a aceitação e renúncia de herança. A condição não pode integrar os de caráter patrimonial pessoal, como os direitos de família puros, e os direitos personalíssimos, como casamento, o reconhecimento de filho, a adoção e a emancipação.

termo, por sua vez, pode ser definido como o momento futuro, que se determina no tempo, em que os efeitos do negócio jurídico devem começar ou devem cessar de ser produzidos. O momento definido (portanto, certo), como define Renan Lotufo, pode ser referido diretamente no calendário, sendo, então, chamado de dies certus quando, ou pode ter como referência um acontecimento cujo momento não é possível precisar, mas que certamente ocorrerá, aí será chamado de dies incertus quando.

O mais comum, porém, é ver essa divisão chamada de termo inicial (dies a quo), em que têm início os efeitos do negócio, e termo final (dies ad quem), que tem eficácia resolutiva na medida em que ele extingue os efeitos do negócio. 

 Não se deve confundir termo com prazo. Prazo é justamente o lapso temporal que se dá entre o termo inicial e o final.

Com estas explicações, já é possível ver a diferença entre condição suspensiva e termo inicial. No termo inicial, suspende-se o exercício, e não a aquisição do direito, ao passo que, na condição suspensiva, suspende-se o exercício e a aquisição do direito.

Por fim, o Professor Vicente Rao (1892-1978) define modo ou encargo (art.136, CC) como uma determinação, imposta pelo autor do ato de uma liberalidade, que adere a este ato de liberalidade, restringindo o ato a determinados moldes desejados. Expliquemos melhor.

O encargo se apresenta como uma cláusula acessória às liberalidades, como, por exemplo, doações ou testamentos nas quais se impõe ao beneficiário uma obrigação. Também são possíveis declarações unilaterais de vontade, como a promessa de recompensa. Apesar disso, não é possível o negócio oneroso, porque equivaleria a uma contraprestação.

A literatura brasileira traz um belo exemplo de encargo no livro Quincas Borba do Machado de Assis, aquele do famoso “ao vencedor, as batatas!”. Neste livro, o protagonista Rubião herda todo o patrimônio do falecido Quincas Borba. Só que Quincas Borba colocou apenas uma restrição como condição para o recebimento da herança, que era cuidar do cachorro, também chamado de Quincas Borba. 

Com relação à diferença entre encargo e condição suspensiva, o Professor Carlos Roberto Gonçalves apresenta um resumo interessante: a condição é suspensiva, mas não coercitiva. Ninguém pode ser obrigado a cumprir uma condição.

Já o encargo é coercitivo, mas não suspensivo.

Observações sobre os Requisitos de Validade

1. Os requisitos gerais de validade são previstos no art. 104 do CC. Aplicam-se, como o termo “geral” afirma, a qualquer negócio jurídico (testamento, contrato, casamento, etc). Além destes, a lei pode estabelecer requisitos especiais de validade, como acontece nos arts. 489, 496, 548 e 549 do CC.

2. O não atendimento aos requisitos gerais ou especiais acarretará a invalidade do negócio jurídico. A invalidade pode ser na forma de nulidade ou anulabilidade.

3. Princípio da conservação dos negócios jurídicos (da preservação ou da continuidade dos negócios). A lei estabelecerá uma série de regras para que o juiz possa, diante do caso concreto, ao verificar o não atendimento a um requisito de validade, evitar a aplicação da sanção de invalidade, preservando-se a vontade declarada. Assim, invalidade é a ultima ratio, isto é, só deve ser aplicada quando o negócio não puder ser “salvo”. Algumas hipóteses de conservação são:

  • Confirmação ou ratificação: a própria parte (confirmação) ou seu assistente (ratificação) podem confirmar o negócio a fim de afastar a anulabilidade. Assim, após a prática do negócio com uma causa de anulabilidade, a parte ou seu assistente, de maneira expressa ou tácita, podem declarar que concordam com aquilo que foi praticado.
  • Redução (art.184): o negócio eivado de invalidade é como um paciente doente. A morte não é a melhor forma de tratá-lo. Assim, a redução é como uma cirurgia no negócio jurídico, em que a parte ruim é retirada. Dessa forma, declara-se nula somente a cláusula que tiver maculada, ocorrendo então uma declaração parcial de invalidade do negócio, como no exemplo de uma multa abusiva dentro do contrato de consumo. Porém, isso só pode ser feito caso a cláusula não seja essencial ao negócio jurídico, caso contrário, a existência do negócio estaria ferida.

Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal.

  • Revisão: é uma forma de evitar a nulidade do negócio jurídico a partir da revisão das cláusulas deste. Ocorre geralmente quando as prestações forem desproporcionais, como no caso de contratação por inexperiência ou premente necessidade (art.157, CC) ou para salvar-se ou salvar pessoa próxima de perigo iminente conhecido pela outra parte (art.156, CC). Assim, tais cláusulas devem ser alteradas para que se estabeleça o equilíbrio entre as prestações.

Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.

Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias.

Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.

  • Conservação substancial: (recategorização ou transinterpretação): art. 170, CC. As partes, por vezes, ao emitirem suas vontades, ignoram que a lei exige certos requisitos. Se o juiz entender que se a parte soubesse do requisito iria cumpri-la, a lei permite que ele possa recategorizar o negócio jurídico a fim de que a vontade manifestada venha a se amoldar à exigência legal. O juiz deve atentar para não alterar a vontade das partes.

Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.

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