Término do proc. legislativo

No nosso encontro anterior, analisamos o início e o desenvolvimento do processo legislativo, vendo como uma "propositura" (ideia) se transforma em um "projeto de lei" após a aprovação pelas duas Casas do Congresso Nacional (Câmara e Senado).

Agora, vamos analisar a fase final: o que acontece quando esse projeto de lei retorna ao Presidente da República. Esta etapa é regida pela competência privativa descrita no Artigo 84, inciso IV, da Constituição Federal (CF/88).

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;

Vamos dissecar essa competência em duas partes: (1) a conclusão da lei e (2) o poder de regulamentá-la.

A Teoria da Norma Jurídica: A "Escada Pontiana"

Para entender os atos de sancionar, promulgar e publicar, precisamos recorrer à teoria da norma jurídica, celebremente desenvolvida no Brasil por Pontes de Miranda e sua "Escada Pontiana".

Segundo essa teoria, toda norma jurídica passa por três planos (degraus) para ter plena força:

  1. Plano da Existência: A norma existe no ordenamento jurídico? (É uma questão ontológica: "está ou não está no direito brasileiro?").
  2. Plano da Validade: A norma, que já existe, foi criada corretamente? Ela é compatível com as normas superiores (especialmente a Constituição)?
  3. Plano da Eficácia: A norma, que existe e é válida, tem potência para produzir seus efeitos no mundo real?

Sancionar, Promulgar e Publicar: Os Degraus em Ação

Os atos do Presidente da República se encaixam perfeitamente nessa teoria:

Sanção e Promulgação (Plano da Existência)

Quando o projeto de lei chega ao Presidente, ele realiza a sanção e a promulgação:

  • Sanção (Art. 66 da CF/88): É o ato de concordância do Presidente. É o "sim" do Chefe do Executivo ao projeto de lei aprovado pelo Legislativo. (A alternativa seria o Veto, que é a rejeição).
  • Promulgação: Este é o ato que, de fato, "põe a norma para dentro do guarda-roupa" do ordenamento jurídico. A promulgação atesta formalmente que o processo legislativo foi cumprido e que a lei agora existe no mundo jurídico.

Correção da Aula: Sancionar é o ato de concordância (aquiescência). Promulgar é o ato que atesta a existência. Na prática, ambos são vistos como complementares para consolidar a existência da lei.

Publicação (Plano da Eficácia)

Uma lei pode existir e ser válida, mas ainda não produzir efeitos. A publicação (geralmente no Diário Oficial da União) é o ato que dá conhecimento público da nova lei à sociedade.

A publicação é o gatilho para a eficácia. É a partir dela que se inicia a contagem do prazo de vacatio legis (o período entre a publicação e a entrada em vigor). Após esse prazo, a lei se torna eficaz e exigível de todos.

No plano da eficácia, a teoria distingue:

  • Aplicabilidade: A norma não é "barrada" por outras normas do sistema. Ela é tecnicamente aplicável.
  • Efetividade: A sociedade de fato aceita e obedece à norma.

Jurisprudência (Teoria): O STF já indicou (como mencionado na transcrição) que para uma norma ser considerada eficaz, basta que ela tenha aplicabilidade, mesmo que sua efetividade (aceitação social) seja baixa.

Exemplo: A lei de combate à pirataria. Ela tem baixa efetividade (muitos a descumprem), mas tem total aplicabilidade (o sistema jurídico permite sua aplicação forçada). Portanto, ela é considerada eficaz.

O Plano da Validade e o Controle do STF

O segundo degrau, a validade, questiona se a norma "existe de maneira correta". Uma norma pode ser inválida por:

  • Nulidade Relativa: Um erro superável, que pode ser corrigido (convalidado) ou reinterpretado (ex: por mutação constitucional).
  • Nulidade Absoluta: Um erro fundamental e insuperável (ex: uma lei que viola diretamente uma cláusula pétrea).

Jurisprudência (Controle de Constitucionalidade): Quando o Supremo Tribunal Federal (STF), em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), declara uma lei inconstitucional, ele está atestando uma nulidade absoluta. Embora seja uma análise do plano da validade, o efeito prático é a retirada da norma do ordenamento, afetando, em última instância, sua existência.

O Poder Regulamentar: "Fiel Execução" da Lei

A segunda parte do Art. 84, IV, trata dos decretos e regulamentos. Estes são o "Poder Regulamentar" do Executivo.

  • Finalidade: As leis são, por natureza, abstratas e gerais. O legislador não consegue prever todas as minúcias da aplicação prática. Os decretos e regulamentos servem para dar "profundidade" e "esmiuçar" a lei, permitindo sua fiel execução.
  • Hierarquia: São normas secundárias. Elas existem para fazer a lei funcionar, e não para si mesmas.

Exemplo: A Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) proíbe o uso e tráfico de "drogas". Mas o que é "droga"? A lei não lista. É um ato do Poder Executivo (uma Portaria da ANVISA, que tem força de regulamento) que define quais substâncias são consideradas entorpecentes proibidos. A portaria está dando "fiel execução" à lei.

A Limitação Fundamental: Não Inovar

O ponto crucial do poder regulamentar é que ele não pode inovar no ordenamento jurídico. Ou seja, um decreto não pode criar direitos, impor obrigações, proibições ou punições que já não estejam previstas, ao menos em essência, na própria lei.

Quem inova é a lei. O decreto apenas a executa.

Jurisprudência (Limites do Poder Regulamentar): O STF é rigoroso na guarda desse princípio. No julgamento da ADI 4.176/DF, o Tribunal reafirmou que o poder regulamentar do Presidente da República (Art. 84, IV) destina-se exclusivamente a "produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução da lei".

Se um decreto extrapola os limites da lei, criando obrigações não previstas nela, ele viola diretamente o Princípio da Legalidade (ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei - Art. 5º, II da CF/88) e o princípio da separação dos poderes (Art. 2º da CF/88).

(Nota: Existe uma exceção a essa regra de não inovação, os chamados "decretos autônomos" do Art. 84, VI, que analisaremos futuramente).