No nosso encontro anterior, analisamos o início e o desenvolvimento do processo legislativo, vendo como uma "propositura" (ideia) se transforma em um "projeto de lei" após a aprovação pelas duas Casas do Congresso Nacional (Câmara e Senado).
Agora, vamos analisar a fase final: o que acontece quando esse projeto de lei retorna ao Presidente da República. Esta etapa é regida pela competência privativa descrita no Artigo 84, inciso IV, da Constituição Federal (CF/88).
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;
Vamos dissecar essa competência em duas partes: (1) a conclusão da lei e (2) o poder de regulamentá-la.
Para entender os atos de sancionar, promulgar e publicar, precisamos recorrer à teoria da norma jurídica, celebremente desenvolvida no Brasil por Pontes de Miranda e sua "Escada Pontiana".
Segundo essa teoria, toda norma jurídica passa por três planos (degraus) para ter plena força:
Os atos do Presidente da República se encaixam perfeitamente nessa teoria:
Quando o projeto de lei chega ao Presidente, ele realiza a sanção e a promulgação:
Correção da Aula: Sancionar é o ato de concordância (aquiescência). Promulgar é o ato que atesta a existência. Na prática, ambos são vistos como complementares para consolidar a existência da lei.
Uma lei pode existir e ser válida, mas ainda não produzir efeitos. A publicação (geralmente no Diário Oficial da União) é o ato que dá conhecimento público da nova lei à sociedade.
A publicação é o gatilho para a eficácia. É a partir dela que se inicia a contagem do prazo de vacatio legis (o período entre a publicação e a entrada em vigor). Após esse prazo, a lei se torna eficaz e exigível de todos.
No plano da eficácia, a teoria distingue:
Jurisprudência (Teoria): O STF já indicou (como mencionado na transcrição) que para uma norma ser considerada eficaz, basta que ela tenha aplicabilidade, mesmo que sua efetividade (aceitação social) seja baixa.
Exemplo: A lei de combate à pirataria. Ela tem baixa efetividade (muitos a descumprem), mas tem total aplicabilidade (o sistema jurídico permite sua aplicação forçada). Portanto, ela é considerada eficaz.
O segundo degrau, a validade, questiona se a norma "existe de maneira correta". Uma norma pode ser inválida por:
Jurisprudência (Controle de Constitucionalidade): Quando o Supremo Tribunal Federal (STF), em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), declara uma lei inconstitucional, ele está atestando uma nulidade absoluta. Embora seja uma análise do plano da validade, o efeito prático é a retirada da norma do ordenamento, afetando, em última instância, sua existência.
A segunda parte do Art. 84, IV, trata dos decretos e regulamentos. Estes são o "Poder Regulamentar" do Executivo.
Exemplo: A Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) proíbe o uso e tráfico de "drogas". Mas o que é "droga"? A lei não lista. É um ato do Poder Executivo (uma Portaria da ANVISA, que tem força de regulamento) que define quais substâncias são consideradas entorpecentes proibidos. A portaria está dando "fiel execução" à lei.
O ponto crucial do poder regulamentar é que ele não pode inovar no ordenamento jurídico. Ou seja, um decreto não pode criar direitos, impor obrigações, proibições ou punições que já não estejam previstas, ao menos em essência, na própria lei.
Quem inova é a lei. O decreto apenas a executa.
Jurisprudência (Limites do Poder Regulamentar): O STF é rigoroso na guarda desse princípio. No julgamento da ADI 4.176/DF, o Tribunal reafirmou que o poder regulamentar do Presidente da República (Art. 84, IV) destina-se exclusivamente a "produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução da lei".
Se um decreto extrapola os limites da lei, criando obrigações não previstas nela, ele viola diretamente o Princípio da Legalidade (ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei - Art. 5º, II da CF/88) e o princípio da separação dos poderes (Art. 2º da CF/88).
(Nota: Existe uma exceção a essa regra de não inovação, os chamados "decretos autônomos" do Art. 84, VI, que analisaremos futuramente).