Para compreender as atribuições do Presidente da República, listadas no artigo 84 da Constituição Federal (CF/88), é crucial entender primeiro o conceito de "competência privativa".
No federalismo brasileiro, a Constituição divide as responsabilidades e poderes entre os entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). Essa divisão, chamada de "repartição de competências", se organiza em dois grandes eixos:
A competência administrativa pode ser classificada de duas formas:
É aquela exercida simultaneamente por todos os entes federativos (União, Estados, DF e Municípios), em regime de cooperação.
Exemplo: A defesa do meio ambiente. Todos os entes têm o dever de proteger o meio ambiente, cada um atuando por meio de seus órgãos (ex: IBAMA na União, polícias ambientais nos Estados).
Fundamento Legal: As competências comuns estão listadas no Art. 23 da CF/88.
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;
VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;
(...)
É aquela atribuída a apenas um ente federativo, que a exerce com exclusividade, não podendo delegá-la.
Art. 21. Compete à União:
XXIII - explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições:
a) toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional;
(...)
Ela também se subdivide:
É a competência atribuída à União para legislar sobre determinados temas com primazia. A principal característica é que ela admite delegação.
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;
IV - águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;
(...)
Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.
Aqui, diferentes entes federativos podem legislar sobre o mesmo tema, mas com papéis distintos.
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;
V - produção e consumo;
VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;
(...)
§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
Os Municípios não possuem competência legislativa privativa ou concorrente (nos moldes do Art. 22 e 24). Sua competência legislativa está focada em:
O Supremo Tribunal Federal (STF) é frequentemente chamado a decidir sobre conflitos de competência, ajudando a definir os limites entre o que é privativo (Art. 22) e concorrente (Art. 24).
Caso 1: Invasão da Competência Privativa (Inconstitucionalidade)
No julgamento da ADPF 1.066, o STF declarou inconstitucional uma lei municipal que isentava o pagamento de honorários advocatícios de sucumbência devidos aos procuradores municipais. O Tribunal entendeu que "honorários" são matéria de direito processual, cuja competência legislativa é privativa da União (Art. 22, I).
Caso 2: Exercício Válido da Competência Concorrente (Constitucionalidade)
Na ADI 5.677, o STF analisou uma lei estadual que obrigava operadoras de telefonia (telecomunicações) a fornecer informações detalhadas em faturas. As empresas alegaram que a lei invadia a competência privativa da União para legislar sobre telecomunicações (Art. 22, IV). O STF, contudo, decidiu que a lei era constitucional, pois tratava primariamente de proteção ao consumidor, matéria de competência concorrente (Art. 24, V).
Agora, aplicamos o conceito de "competência privativa" ao Chefe do Poder Executivo. As atribuições do Art. 84 são privativas do Presidente, o que significa que a titularidade é dele, mas a execução pode ser delegada.
É fundamental distinguir:
Quando o Presidente delega, ele transfere apenas a execução do ato, mas permanece sendo o titular da competência.
O Parágrafo Único do Art. 84 estabelece as regras para essa delegação.
Art. 84. (...)
Parágrafo único. O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações.
O que pode ser delegado:
(Nota: A segunda parte do inciso XXV, "extinguir os cargos públicos federais, na forma da lei", não é delegável segundo a literalidade do parágrafo único, embora o inciso VI, "b", permita a delegação da extinção de cargos vagos por decreto).
Como o Presidente não transfere a titularidade, ele detém o poder de avocação. Isso significa que, a qualquer momento, ele pode retomar para si a execução da competência que havia delegado, cancelando o ato de delegação.
O STF já validou essa delegação em diversos julgados, confirmando sua constitucionalidade.
Caso: Delegação de Demissão de Servidor (RMS 25.518/DF)
Neste caso (Mandado de Segurança), discutia-se a validade de uma portaria de Ministro de Estado que aplicou a pena de demissão a um servidor público. A defesa alegou que a competência seria do Presidente (Art. 84, XXV - prover e extinguir cargos).
O STF, no entanto, reafirmou seu entendimento de que a delegação prevista no Parágrafo Único do Art. 84 aos Ministros de Estado para prover e extinguir cargos (e, por consequência, aplicar a pena de demissão, que resulta na vacância do cargo) é perfeitamente constitucional.
Portanto, "competência privativa" do Presidente da República (Art. 84) significa que o conjunto de atribuições listadas é de sua titularidade, mas ele pode, por ato normativo próprio e dentro dos limites constitucionais (Art. 84, Parágrafo Único), transferir o poder de executar esses atos a agentes públicos específicos (Ministros, PGR e AGU).