Introdução

Existem algumas espécies do delito de peculato. O art. 312, caput do CP apresenta o peculato apropriação. A segunda parte trata do peculato desvio. Ambos são o que se chama de peculato próprio. O art. 312, §1º, CP traz o peculato furto, enquanto o §2º menciona o peculato culposo. Por fim, o art. 313 tipifica o peculato mediante erro de outrem ou peculato-estelionato.

Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo (peculato apropriação), ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio (peculato desvio):

Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.

§1ºAplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário (peculato furto).

§2º  Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem (peculato culposo):

Pena - detenção, de três meses a um ano.

Art. 313.  Apropriar-se de dinheiro ou qualquer utilidade que, no exercício do cargo, recebeu por erro de outrem (peculato mediante erro de outrem ou peculato estelionato):

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

Tanto o peculato apropriação quanto o peculato mediante erro de outrem utilizam o termo “apropriar-se”, mas, naquele, o funcionário tem posse legítima do bem por ser funcionário público, enquanto, no último, o funcionário somente tem a posse por força de erro de outrem.

Peculato Próprio

O peculato próprio abrange o peculato apropriação e o peculato desvio, as duas modalidades do art. 312, caput do Código Penal. O sujeito ativo será o funcionário público, conforme o sentido amplo apresentado no art. 327 do Código Penal. Importante anotar que funcionários públicos aposentados poderão responder por peculato próprio.

É possível o concurso de pessoas que não sejam funcionários públicos no cometimento do peculato próprio. A doutrina chama, neste caso, o funcionário público de intraneus e o particular de extraneus, terceiros que concorrem à prática do ilícito e que podem responder.

Os dados do crime se dividem em elementares, circunstâncias e condições. As circunstâncias, dados que aumentam ou diminuem a pena, somente se comunicam se não forem pessoais (objetivas). As condições, situações que existem independentemente da prática do crime, como a reincidência, também só se comunicam se forem do conhecimento de todos. A elementar, por fim, integra o núcleo do tipo e sempre se comunica, mesmo que seja subjetiva ou pessoal, desde que de conhecimento do coautor ou partícipe. 

Utilizando esta lição, o particular pode responder pelo crime funcional praticado em concurso com o funcionário público, desde que saiba desta sua situação, ou seja, que saiba que o autor é funcionário público. Caso ele não saiba, não haverá concurso de pessoas, mas, eventualmente, a ocorrência de outro crime.

Existem, ainda, figuras específicas da legislação extravagante que fogem da normativa do Código Penal. Os controladores ou administradores de instituições financeiras, interventores, liquidantes e administradores judiciais se submetem à Lei nº 7.492/1986. O prefeito e seu substituto respondem nos moldes do Decreto-lei 201/1967.

Quem é o sujeito passivo do peculato próprio? A vítima primária do delito é a Administração Pública. Eventualmente, se o patrimônio for de um particular, ele será a vítima secundária. Por exemplo, um particular teve seu carro apreendido e recolhido a um pátio público, sendo, posteriormente, subtraído pelo chefe do pátio.

Quanto ao peculato apropriação, o agente se apodera, se apropria, de um bem móvel do qual tem a posse legítima. Em outros termos, a sua função faz com que ele tenha a posse daquele bem. O funcionário público, assim, passa a se comportar como se fosse o dono.
No peculato desvio, o agente dá uma destinação diversa do bem que possui legitimamente em razão do seu cargo, com vista a benefício próprio ou alheio. O crime é formal, ou seja, haverá o crime mesmo que a finalidade específica ou especial fim de agir não seja atingido. A diferença é basicamente que, enquanto no peculato apropriação o agente toma a coisa para si, no desvio ele dá uma destinação diversa da correta, em proveito próprio ou alheio.

E se o desvio se der em benefício da Administração Pública? Haverá crime, mas não o peculato. Na realidade, há o crime de emprego irregular de verbas ou rendas públicas, previsto no art. 315 do Código Penal, com pena bem menor que a do peculato. 

Havendo reiterados desvios, haverá crime continuado. O crime continuado é uma ficção jurídica pela qual se considera que vários crimes praticados em tempo, modo e local semelhantes sejam tratados como um só, havendo aumento da pena em razão do número de infrações efetivamente praticas (1/6 a 2/3). Por exemplo, um contrato administrativo que se prolonga no tempo e por meio do qual o agente reiteradamente desvia valores da contratação, configurando diversas práticas de peculato desvio. Haverá crime continuado. Quando o administrador público ordena desconto de parcelas de empréstimos consignados dos salários de servidores e não repassa à instituição financeira ocorre o peculato desvio continuado.

O peculato próprio (apropriação e desvio) exige uma conduta dolosa. Inclusive, o peculato culposo, que será estudado mais adiante, é o único crime funcional que admite a figura culposa. Portanto, o funcionário público deve praticar conscientemente as condutas estudadas.  Quanto ao peculato desvio, há a finalidade específica ou especial fim de agir: proveito alheio próprio. Porém, o crime é formal, ou seja, o proveito próprio ou alheio não precisa ocorrer para a consumação.

Relembrando: os crimes se dividem em materiais, formais e de mera conduta. Os crimes materiais exigem a ocorrência do resultado naturalístico (efeito na prática, no mundo real) para a sua consumação). O crime formal até descreve um resultado, mas não exige sua ocorrência para a consumação. O crime de mera conduta sequer descreve um resultado, mas apenas uma conduta. 

Existe o crime quando o agente tem apenas o ânimo de uso, ou seja, quando ele pretende apenas utilizar o bem sem se apropriar dele? Isto depende da natureza do bem utilizado. Se o bem for consumível (aquele que se esgota com seu uso), haverá um crime. Porém, se o bem for inconsumível, aquele que pode ser utilizado reiteradas vezes, o delito não será considerado. Por exemplo, o agente quer utilizar um equipamento da Administração Pública com intenção de devolvê-lo. São bens inconsumíveis. Se o agente os devolver após o uso, há fato atípico. Contudo, pode haver improbidade administrativa por enriquecimento ilícito (art. 9º, IV, Lei de Improbidade Administrativa). 

E quando o agente se utiliza de serviços, como quando um funcionário se utiliza de pedreiros e serventes contratados pela Administração para realizar a sua obra particular? Segundo o STF, não há peculato. Se este agente for prefeito, há crime de responsabilidade (art. 1º, Decreto-lei 201/1967).

Quando se consuma o peculato próprio?

  • Peculato Apropriação: haverá consumação quando o funcionário se apropria do bem e age como se fosse seu dono.
  • Peculato Desvio: haverá peculato quando há alteração do destino da coisa, ainda que o agente não atinja o proveito próprio ou alheio desejado.

Ainda, não há necessidade de qualquer lucro efetivo. É um crime plurissubsistente, ou seja, pode ser fracionado em várias condutas autônomas que, somadas, compõem o delito, de forma que se admite a tentativa em peculato próprio.

Se não houver relação entre a posse invertida e a função do agente, haverá simplesmente apropriação indébita, crime comum (que qualquer pessoa pode cometer). Portanto, o peculato exige a posse do bem em razão da função do agente. Caso a posse advenha de um meio fraudulento, haverá estelionato, não peculato, pelo mesmo motivo acima. Por fim, se decorrente de violência ou grave ameaça, haverá roubo.

Peculato Impróprio e Peculato Culposo

O peculato impróprio é o também chamado de peculato furto. Há a subtração de coisa sob a guarda ou custódia da Administração. Portanto, ao contrário do peculato próprio, o agente não tem a posse do bem, mas se utiliza de facilidade que a condição de funcionário público lhe confere.

Logo, é necessário que haja o animus furandi, ou seja o agente tenha vontade consciente de subtrair ou concorrer para a subtração da coisa, e o animus rem sibi habendi, que é a intenção de não devolver a coisa ao proprietário. Se ele desejar devolver a coisa, não há peculato impróprio (parecido com o que ocorre com o peculato próprio).

A diferença entre o peculato apropriação e o peculato furto é a mesma entre apropriação indébita e furto, ou seja, na primeira modalidade, o agente tem a posse livre e desvigiada da coisa, ao contrário da segunda. Se o agente não se valer da facilidade da condição de funcionário, haverá furto. 

A consumação se dá com a efetiva subtração da coisa, conforme a Teoria da Amotio, a mesma do delito de furto, não havendo necessidade de posse mansa e pacífica do bem. Logo, assim como nos crimes patrimoniais, é prescindível a posse mansa e pacífica.

Súmula 582 do STJ. Consuma-se o crime de roubo com a inversão da posse do bem mediante emprego de violência ou grave ameaça, ainda que por breve tempo e em seguida à perseguição imediata ao agente e recuperação da coisa roubada, sendo prescindível a posse mansa e pacífica desvigiada.

O peculato culposo é a única modalidade de crime funcional culposo e ocorre quando o funcionário público, por negligência, imprudência ou imperícia, infringe um dever de cuidado objetivo e cria condições favoráveis para que terceiro pratique um peculato doloso, em qualquer modalidade. Não há concurso de pessoas. Por exemplo, o último funcionário a sair de uma repartição esquece de trancar a porta, facilitando que outro venha a subtrair o computador do local. 

Há crime se o agente negligente concorre para a prática de um delito não funcional, ou seja, se o terceiro praticar um crime não funcional, como um furto? O entendimento majoritário na doutrina é de que não, mas há quem entenda, como o Prof. Rogério Sanches, que isto também é caso de peculato culposo pelo funcionário público.

A consumação do peculato culposo ocorre quando se aperfeiçoa a conduta dolosa do terceiro, ou seja, quando este terceiro comete o seu crime funcional. Como é um crime culposo, não há tentativa. Pela pena, admite-se a transação penal (infração de menor potencial ofensivo de pena máxima igual ou inferior a 2 anos) e a suspensão condicional do processo (pena mínima igual ou menor a 1 ano), previstos na Lei nº 9.099/1995, exatamente por ser de competência do JECrim. 

Reparação do Dano e Ação Penal

O peculato culposo admite a reparação do dano com repercussões na pena. O interesse, considerando o fato de ser um crime leve, é maior na recuperação patrimonial do que na punição. Se a reparação se der antes da sentença irrecorrível, haverá extinção da punibilidade do agente. Mesmo após a sentença irrecorrível, haverá benefício: redução de metade da pena imposta. Importante anotar que isto não impede a aplicação de sanções administrativas, haja vista a independência das instâncias.

Nas modalidades de peculato doloso, a reparação do dano pode, no máximo, importar em arrependimento posterior (art. 16, CP), com redução da pena de 1 a 2/3, desde que ela se dê até o recebimento da denúncia, ou, se antes da sentença, aplicação da atenuante genérica do art. 65, III, “b”, CP. Existe, porém, divergências doutrinárias e jurisprudenciais quanto à aplicação do arrependimento posterior. 

Art. 16. Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.

A ação penal do crime de peculato é pública incondicionada, haja vista o interesse especial do Estado em relação à ela. Por força do princípio da especialidade, tratando-se de condutas regidas no Código Penal Militar, haverá o crime nele previsto (art. 303). 

Peculato Mediante Erro de Outrem

Art. 313, CP. Apropriar-se de dinheiro ou qualquer utilidade que, no exercício do cargo, recebeu por erro de outrem:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

Aquele que se apropria de dinheiro ou utilidade obtida no exercício do cargo por erro de outrem comete este crime. Por isso é chamado de peculato estelionato. Ao contrário do peculato próprio, o funcionário público não tem a posse legítima do bem, mas apenas o recebe por erro de outrem. Se o funcionário público provocou o erro, haverá o crime de estelionato (art. 171, CP).

Em decorrência da pena, apesar de não ser crime de competência do JECrim, é possível a aplicação da suspensão condicional do processo (pena mínima de até 1 ano) ou do acordo de não persecução penal (pena mínima até 4 anos). Importante lembrar que a aplicação dos institutos da Lei dos Juizados Especiais Criminais, a depender do caso, não exigem a competência do Juizado para a sua aplicação, como é o caso da suspensão condicional, que tem critérios próprios, além de ser a situação em que há conexão, continência ou desclassificação no juízo comum.

O sujeito ativo também é o funcionário público no sentido amplo do Código Penal, além de ser possível o concurso com o extraneus que saiba da qualidade de funcionário do seu comparsa, sob pena de verdadeira responsabilidade objetiva, vedada no Direito Penal. A Administração Pública é o sujeito passivo, além de eventual particular que seja lesado (como no exemplo do carro apreendido). 

O peculato do art. 313 se traduz em conduta caracterizda pela inversão da posse dos valores ou bens que o funcionário público recebeu em decorrência do erro do terceiro. O terceiro, de forma espontânea, comete erro e entrega o produto ao intraneus, sob pena de se tornar estelionato.

Apenas a modalidade dolosa é punida (o peculato culposo é o único crime funcional culposo), o que ocorre quando o agente tem o animus rem sibi habendi. É possível que haja o dolo superveniente, ou seja, o funcionário recebe o bem de boa-fé, mas, após algum tempo, decide se apropriar do bem recebido em erro. 

A consumação ocorre com a apropriação da coisa, quando o agente passa a agir como dono da coisa indevidamente recebida. Por exemplo, se ele recebe algo indevidamente e não percebe, mas, após um tempo, percebe o erro e passa a agir como dono, somente neste segundo momento haverá a consumação do crime. Por fim, admite-se a tentativa, pois é uma modalidade de crime plurissubsistente. 

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