Superendividamento

Introdução

O Código de Defesa do Consumidor sofreu algumas alterações e adições com o advento da Lei 14.181/21, conhecida como Lei de Prevenção ao Superendividamento. Apesar de incluir alguns incisos na parte intordutória do Código, as adições mais importantes e expressivas foram os arts. 54-A em diante e 104-A em diante.

Esses trechos do diploma legal criam uma série de regras e diretrizes para promover maior educação financeira no mercado de consumo e alguns mecanismos para evitar o endividamento dos consumidores, sobretudo aqueles que se encontram em maior vulnerabilidade (além de consumidor, possui alguma outra característica vulnerável).


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Oferta de Crédito e Educação Financeira

Art. 54-A: Conceito de superendividamento

Superendividamento é a situação manifesta/expressa/evidente em que o consumidor pessoa natural está impossibilitado de pagar a totalidade de suas dívidas de consumo sem comprometer o seu mínimo existencial. Trata-se de situação semelhante à insolvência civil, mas apenas considerando as dívidas de consumo: a pessoa contraiu tantas dívidas que não consegue pagar sem comprometer suas necessidades básicas (alimentação e moradia, por exemplo).

Vale dizer que as dívidas de consumo incluem também as operações de crédito, as compras a prazo e os serviços de prestação continuada. Por óbvio, só são consideradas para a situação de superendividamento as dívidas contraídas de boa-fé: condutas fraudulentas ou dolosas com objetivo de prejudicar os fornecedores e credores não se enquadram na proteção do CDC.

Arts. 54-B e 54-D: Dever de informação

Quanto à oferta de crédito e à venda a prazo, a lei trouxe mais um dever de informação por parte do fornecedor ou intermediário. Além das exigências já existentes no CDC, o fornecedor deve informar:

o custo efetivo total e a descrição dos elementos que o compõem;

a taxa efetiva mensal de juros, bem como a taxa dos juros de mora e o total de encargos, de qualquer natureza, previstos para o atraso no pagamento;

o montante das prestações e o prazo de validade da oferta, que deve ser, no mínimo, de 2 (dois) dias;

o nome e o endereço, inclusive o eletrônico, do fornecedor;

o direito do consumidor à liquidação antecipada e não onerosa do débito, nos termos do § 2º do art. 52 deste Código e da regulamentação em vigor.

Todas as informações acerca da oferta devem constar de forma compreensível no próprio contrato, efetivando o direito de informação do consumidor.

No mesmo sentido, o art. 54-D, dispõe sobre a responsabilidade dos fornecedores e intermediários em analisar adequadamente as condições de crédito do consumidor: se o cliente já consta em bancos de dados de proteção ao crédito com um alto valor em dívidas, o fornecedor não pode distribuir um crédito muito elevado, visto que isso acumula com as demais pendências.

Além disso, o descumprimento dos deveres de informação adequada e avaliação de condições de crédito pode acarretar consequências para o fornecedor

Art. 54-D. Na oferta de crédito, previamente à contratação, o fornecedor ou o intermediário deverá, entre outras condutas:

I - informar e esclarecer adequadamente o consumidor, considerada sua idade, sobre a natureza e a modalidade do crédito oferecido, sobre todos os custos incidentes, observado o disposto nos arts. 52 e 54-B deste Código, e sobre as consequências genéricas e específicas do inadimplemento;

II - avaliar, de forma responsável, as condições de crédito do consumidor, mediante análise das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito, observado o disposto neste Código e na legislação sobre proteção de dados;

III - informar a identidade do agente financiador e entregar ao consumidor, ao garante e a outros coobrigados cópia do contrato de crédito.

Parágrafo único. O descumprimento de qualquer dos deveres previstos no caput deste artigo e nos arts. 52 e 54-C deste Código poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.

Art. 54-C e 54-G: Vedações

É vedado ao fornecedor, na oferta de crédito ao consumidor:

  • indicar que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor;
  • ocultar ou dificultar a compreensão sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo;
  • assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio;
  • condicionar o atendimento de pretensões do consumidor ou o início de tratativas à renúncia ou à desistência de demandas judiciais, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais.

Art. 54-G. Sem prejuízo do disposto no art. 39 deste Código e na legislação aplicável à matéria, é vedado ao fornecedor de produto ou serviço que envolva crédito, entre outras condutas:

I - realizar ou proceder à cobrança ou ao débito em conta de qualquer quantia que houver sido contestada pelo consumidor em compra realizada com cartão de crédito ou similar, enquanto não for adequadamente solucionada a controvérsia, desde que o consumidor haja notificado a administradora do cartão com antecedência de pelo menos 10 (dez) dias contados da data de vencimento da fatura, vedada a manutenção do valor na fatura seguinte e assegurado ao consumidor o direito de deduzir do total da fatura o valor em disputa e efetuar o pagamento da parte não contestada, podendo o emissor lançar como crédito em confiança o valor idêntico ao da transação contestada que tenha sido cobrada, enquanto não encerrada a apuração da contestação;

II - recusar ou não entregar ao consumidor, ao garante e aos outros coobrigados cópia da minuta do contrato principal de consumo ou do contrato de crédito, em papel ou outro suporte duradouro, disponível e acessível, e, após a conclusão, cópia do contrato;

III - impedir ou dificultar, em caso de utilização fraudulenta do cartão de crédito ou similar, que o consumidor peça e obtenha, quando aplicável, a anulação ou o imediato bloqueio do pagamento, ou ainda a restituição dos valores indevidamente recebidos.

§ 1º Sem prejuízo do dever de informação e esclarecimento do consumidor e de entrega da minuta do contrato, no empréstimo cuja liquidação seja feita mediante consignação em folha de pagamento, a formalização e a entrega da cópia do contrato ou do instrumento de contratação ocorrerão após o fornecedor do crédito obter da fonte pagadora a indicação sobre a existência de margem consignável.

§ 2º Nos contratos de adesão, o fornecedor deve prestar ao consumidor, previamente, as informações de que tratam o art. 52 e o caput do art. 54-B deste Código, além de outras porventura determinadas na legislação em vigor, e fica obrigado a entregar ao consumidor cópia do contrato, após a sua conclusão.

Art. 54-F

Os dispositivos da lei também objetivam proteger o consumidor nos contratos separados, tanto de fornecimento do crédito quanto da aquisição do produto ou serviço. Para tanto, fica estabelecido que esses contratos são conexos, coligados ou interdependentes em situações específicas. Basicamente, quando o fornecimento do crédito tiver relação direta com a aquisição do produto ou serviço, haverá conexão.

Sendo assim, a invalidade ou nulidade do contrato principal também afeta o contrato acessório de fornecimento de crédito, acarretando a resolução de pleno direito. O consumidor pode exercer o direito de arrependimento de acordo com as normas do CDC e pode rescindir o contrato de fornecimento de crédito quando o fornecedor do produto/serviço não executar suas obrigações e deveres.

Art. 54-F. São conexos, coligados ou interdependentes, entre outros, o contrato principal de fornecimento de produto ou serviço e os contratos acessórios de crédito que lhe garantam o financiamento quando o fornecedor de crédito:

I - recorrer aos serviços do fornecedor de produto ou serviço para a preparação ou a conclusão do contrato de crédito;

II - oferecer o crédito no local da atividade empresarial do fornecedor de produto ou serviço financiado ou onde o contrato principal for celebrado.

§ 1º O exercício do direito de arrependimento nas hipóteses previstas neste Código, no contrato principal ou no contrato de crédito, implica a resolução de pleno direito do contrato que lhe seja conexo.

§ 2º Nos casos dos incisos I e II do caput deste artigo, se houver inexecução de qualquer das obrigações e deveres do fornecedor de produto ou serviço, o consumidor poderá requerer a rescisão do contrato não cumprido contra o fornecedor do crédito.

§ 3º O direito previsto no § 2º deste artigo caberá igualmente ao consumidor:

I - contra o portador de cheque pós-datado emitido para aquisição de produto ou serviço a prazo;

II - contra o administrador ou o emitente de cartão de crédito ou similar quando o cartão de crédito ou similar e o produto ou serviço forem fornecidos pelo mesmo fornecedor ou por entidades pertencentes a um mesmo grupo econômico.

§ 4º A invalidade ou a ineficácia do contrato principal implicará, de pleno direito, a do contrato de crédito que lhe seja conexo, nos termos do caput deste artigo, ressalvado ao fornecedor do crédito o direito de obter do fornecedor do produto ou serviço a devolução dos valores entregues, inclusive relativamente a tributos.

Conciliação no Superendividamento

Art. 104-A: Audiência de Conciliação

Além de criar instrumentos de prevenção ao superendividamento, a lei traz a possibilidade de conciliação entre o consumidor e seus credores quando a situação de insolvência no consumo já existe. O consumidor interessado deve fazer um requerimento ao juiz competente, que irá convocar todos os credores para a audiência de repactuação de dívidas, presidida pelo próprio juiz ou por um conciliador credenciado.

Esse procedimento se assemelha em partes com a recuperação judicial, porque o devedor (consumidor) tem que apresentar uma proposta com um plano de pagamento das dívidas em até 5 anos. Novamente, não estão incluídos no escopo protetivo do CDC e da Lei de prevenção ao superendividamento, os contratos celebrados com má-fé ou mediante fraude. Também não serão repactuadas as dívidas de contrato de crédito com garantia real, contratos de financiamento imobiliário e de crédito rural.

Os credores ou seus procuradores com poderes especiais devem comparecer, pois sua ausência implica na suspensão da exigibilidade do débito (não poder cobrar o valor devido) e dos encargos relacionados (juros de mora, por exemplo). 

Art. 104-A. A requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores de dívidas previstas no art. 54-A deste Código, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.

§ 1º Excluem-se do processo de repactuação as dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural.

§ 2º O não comparecimento injustificado de qualquer credor, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, à audiência de conciliação de que trata o caput deste artigo acarretará a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, devendo o pagamento a esse credor ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presentes à audiência conciliatória.

§ 3º No caso de conciliação, com qualquer credor, a sentença judicial que homologar o acordo descreverá o plano de pagamento da dívida e terá eficácia de título executivo e força de coisa julgada.

No plano de repactuação devem constar:

§ 4º Constarão do plano de pagamento referido no § 3º deste artigo:

I - medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, entre outras destinadas a facilitar o pagamento da dívida;

II - referência à suspensão ou à extinção das ações judiciais em curso;

III - data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes;

IV - condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento.

Por fim, o §5º traz uma limitação ao uso da conciliação:

§ 5º O pedido do consumidor a que se refere o caput deste artigo não importará em declaração de insolvência civil e poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de 2 (dois) anos, contado da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, sem prejuízo de eventual repactuação.

Art. 104-B: Plano Judicial Compulsório

Na hipótese de conciliação mal sucedida, o juiz deve instaurar um processo para revisar e integrar os contratos, além de repactuar as dívidas de maneira compulsória, citando todos os credores remanescentes. Os credores que não acataram o plano apresentado, devem justificar a escolha em até 15 dias após a citação.

O magistrado pode nomear administrador, que fica responsável pela elaboração de novo plano de pagamento em até 30 dias, buscando organizar os prazos e diminuir os encargos que recaem sobre o consumidor endividado. Importante notar que o plano judicial compulsório sempre garante, ao menos, o pagamento do principal da dívida com correção monetária aos credores, de forma que a parte não garantida corresponde aos eventuais encargos.

Art. 104-B. Se não houver êxito na conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório e procederá à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado.

§ 1º Serão considerados no processo por superendividamento, se for o caso, os documentos e as informações prestadas em audiência.

§ 2º No prazo de 15 (quinze) dias, os credores citados juntarão documentos e as razões da negativa de aceder ao plano voluntário ou de renegociar.

§ 3º O juiz poderá nomear administrador, desde que isso não onere as partes, o qual, no prazo de até 30 (trinta) dias, após cumpridas as diligências eventualmente necessárias, apresentará plano de pagamento que contemple medidas de temporização ou de atenuação dos encargos.

§ 4º O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual previsto no art. 104-A deste Código, em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado de sua homologação judicial, e o restante do saldo será devido em parcelas mensais iguais e sucessivas.

Art. 104-C: Competência

Art. 104-C. Compete concorrente e facultativamente aos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor a fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas, nos moldes do art. 104-A deste Código, no que couber, com possibilidade de o processo ser regulado por convênios específicos celebrados entre os referidos órgãos e as instituições credoras ou suas associações.

§ 1º Em caso de conciliação administrativa para prevenir o superendividamento do consumidor pessoa natural, os órgãos públicos poderão promover, nas reclamações individuais, audiência global de conciliação com todos os credores e, em todos os casos, facilitar a elaboração de plano de pagamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, sob a supervisão desses órgãos, sem prejuízo das demais atividades de reeducação financeira cabíveis.

§ 2º O acordo firmado perante os órgãos públicos de defesa do consumidor, em caso de superendividamento do consumidor pessoa natural, incluirá a data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes, bem como o condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento, especialmente a de contrair novas dívidas.

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