Aspectos Gerais da Lei Maria da Penha
Fundamento Constitucional
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
A Constituição Federal defende a proteção especial da família, assegurando a assistência de todos os seus membros e impedindo a violência entre eles. A partir deste dispositivo, o Estado se obriga a conter as violências familiares e domésticas, dentre elas a violência doméstica contra a mulher.
A jurisprudência e a doutrina são unânimes ao apontar esse dispositivo como fundamento constitucional da Lei Maria da Penha.
Fundamentos Convencionais
O Brasil ratificou algumas convenções internacionais acerca da violência contra a mulher, a saber:
- Primeira Conferência sobre as Mulheres (1975) – Cidade do México: onde ocorreu a redação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
- Segunda Conferência sobre as Mulheres (1980) – Copenhague
- Terceira Conferência sobre as Mulheres (1985) – Nairóbi
- Convenção Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violência Doméstica (1994) – Belém do Pará
Com a existência destes dispositivos internacionais ratificados no Brasil, a adoção de uma lei interna se tornou uma hipótese cada vez mais plausível, sendo que alguma proteção contra a violência doméstica já estava sendo formada.
Origem da lei: o caso Maria da Penha
Maria da Penha foi uma vítima de violência doméstica na realidade. Durante 23 anos foi agredida pelo marido, que tentou assassiná-la duas vezes em 1993. Na primeira tentativa, o marido a deixou paraplégica com um tiro. Na segunda, o homem usou de eletrocussão e afogamento.
Somente depois de 18 anos da denúncia das tentativas de homicídio, o marido de Maria da Penha foi preso.
O Brasil chegou a ser denunciado à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com isso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos elaborou o Relatório 54/2001, que apontou a ausência de medidas concretas brasileiras contra a violência de gênero.
A ineficácia das leis brasileiras perante o caso destacou a necessidade de normativas mais específicas para a violência doméstica contra a mulher.
A partir disto, a Lei Maria da Penha foi elaborada e promulgada.
Finalidades
- Criar mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher: fundamento no §8° do art. 226 da CF/88 e nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil;
- Criar Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher;
- Estabelecer medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Notificação Compulsória
A violência doméstica deve ser notificada conforme a lei. Antes de 2019, a notificação era prevista na lei 10.778/03. Os agentes da saúde que identificassem indícios da violência em pacientes deveriam comunicar as autoridades sanitárias para registro estatístico de política pública. Porém, não havia prazo para a notificação e a polícia não era necessariamente envolvida. O objetivo era a mera coleta de dados.
Com a lei 13.931/19, a notificação compulsória dos agentes da rede pública e privada de saúde passaram a contemplar a denúncia para autoridades policiais, com o prazo de 24 horas. Sendo assim, além do registro estatístico para controle da violência por políticas públicas, cada caso específico obrigatoriamente será tratado pelas autoridades policiais.
Proteção além do sexo biológico
O STJ, no informativo 732, firmou entendimento que a aplicação da Lei Maria da Penha abrange também as mulheres transexuais:
Tema: Violência doméstica contra mulher trans. Aplicação da Lei n. 11.340/2006. Lei Maria da Penha. Afastamento de aplicação do critério exclusivamente biológico. Distinção entre sexo e gênero. Identidade. Relação de poder e modus operandi. Alcance teleológico da lei.
Destaque: A Lei n. 11.340/2006 (Maria da Penha) é aplicável às mulheres trans em situação de violência doméstica.
O posicionamento veio em julgamento de recurso especial:
RECURSO ESPECIAL. MULHER TRANS. VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. APLICAÇÃO DA LEI N. 11.340/2006, LEI MARIA DA PENHA. CRITÉRIO EXCLUSIVAMENTE BIOLÓGICO. AFASTAMENTO. DISTINÇÃO ENTRE SEXO E GÊNERO. IDENTIDADE. VIOLÊNCIA NO AMBIENTE DOMÉSTICO. RELAÇÃO DE PODER E MODUS OPERANDI. ALCANCE TELEOLÓGICO DA LEI. MEDIDAS PROTETIVAS. NECESSIDADE. RECURSO PROVIDO. (REsp 1977124/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em
05/04/2022,)2. É descabida a preponderância, tal qual se deu no acórdão impugnado, de um fator meramente biológico sobre o que realmente importa para a incidência da Lei Maria da Penha, cujo arcabouço protetivo se volta a julgar autores de crimes perpetrados em situação de violência doméstica, familiar ou afetiva contra mulheres. Efetivamente, conquanto o acórdão recorrido reconheça diversos direitos relativos à própria existência de pessoas trans, limita à condição de mulher biológica o direito à proteção conferida pela Lei Maria da Penha.
3. A vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos não pode ser resumida tão somente à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas e o Direito não se deve alicerçar em argumentos simplistas e reducionistas.
4. Para alicerçar a discussão referente à aplicação do art. 5º da Lei Maria da Penha à espécie, necessária é a diferenciação entre os conceitos de gênero e sexo, assim como breves noções de termos transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis, com a compreensão voltada para a inclusão dessas categorias no abrigo da Lei em comento, tendo em vista a relação dessas minorias com a lógica da violência doméstica contra a mulher.
5. A balizada doutrina sobre o tema leva à conclusão de que as relações de gênero podem ser estudadas com base nas identidades feminina e masculina. Gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres. Uma análise de gênero pode se limitar a descrever essas dinâmicas. O feminismo vai além, ao mostrar que essas relações são de poder e que produzem injustiça no contexto do patriarcado. Por outro lado, sexo refere-se às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, bem como ao seu funcionamento, de modo que o conceito de sexo, como visto, não define a identidade de gênero. Em uma perspectiva não meramente biológica, portanto, mulher trans mulher é.
Nesse contexto vem a Edição Nº 205 da Jurisprudência em Teses:
As medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006 são aplicáveis às minorias, como transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis em situação de violência doméstica, afastado o aspecto meramente biológico.