A responsabilidade civil do adotante em face do arrependimento na adoção

“Devolução” de Crianças e Adolescentes Adotados

A desistência do processo de adoção, muitas vezes, é chamada de “devolução”. O uso desse termo, além de remeter muito mais a bens do que a pessoas, apresenta toda a dureza (e a realidade) da situação de desistência, em que a criança ou o adolescente, que estava prestes a consolidar vínculos familiares (se já não os consolidara), retorna ao abrigo com sensação dobrada de rejeição, tanto pela família de origem quanto pela adotiva.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça, a falta de visibilidade dos casos de “devolução” explica-se pelo fato de o Conselho Nacional de Adoção não divulgar dados quanto ao número de adotados “devolvidos” depois de já iniciado o processo de adoção. Em 2017, a BBC News afirmou que, em um período de cinco anos, foram “devolvidas” 172 crianças em apenas onze estados do Brasil.

A possibilidade de responsabilização civil decorrente da desistência, por sua vez, apresenta-se de maneiras diferentes, a depender da fase do processo de adoção em que ocorrer.

Desistência Durante o Estágio de Convivência

Antes de consolidar a adoção propriamente dita, tem-se o estágio de convivência, que consiste em uma determinação judicial para permitir que o adotado more alguns dias com os adotantes, sem sair definitivamente do abrigo, a fim de propiciar o contato prévio entre eles. Esse período serve para que haja uma construção afetiva na família, sempre acompanhada de psicólogos e assistentes sociais que emitirão um parecer informando se os adotantes estão aptos ou não para avançar à fase final da adoção.

Os prazos e as peculiaridades dessa etapa estão mais bem especificados no artigo 46 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):

ECA

Art. 46.  A adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo máximo de 90 (noventa) dias, observadas a idade da criança ou adolescente e as peculiaridades do caso. 
§ 1º O estágio de convivência poderá ser dispensado se o adotando já estiver sob a tutela ou guarda legal do adotante durante tempo suficiente para que seja possível avaliar a conveniência da constituição do vínculo. 
§ 2º A simples guarda de fato não autoriza, por si só, a dispensa da realização do estágio de convivência. 
§ 2º-A. O prazo máximo estabelecido no caput deste artigo pode ser prorrogado por até igual período, mediante decisão fundamentada da autoridade judiciária. 
§ 3º Em caso de adoção por pessoa ou casal residente ou domiciliado fora do País, o estágio de convivência será de, no mínimo, 30 (trinta) dias e, no máximo, 45 (quarenta e cinco) dias, prorrogável por até igual período, uma única vez, mediante decisão fundamentada da autoridade judiciária.
§ 3º-A. Ao final do prazo previsto no § 3º deste artigo, deverá ser apresentado laudo fundamentado pela equipe mencionada no § 4º deste artigo, que recomendará ou não o deferimento da adoção à autoridade judiciária. 
§ 4º O estágio de convivência será acompanhado pela equipe interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política de garantia do direito à convivência familiar, que apresentarão relatório minucioso acerca da conveniência do deferimento da medida.  
§ 5º O estágio de convivência será cumprido no território nacional, preferencialmente na comarca de residência da criança ou adolescente, ou, a critério do juiz, em cidade limítrofe, respeitada, em qualquer hipótese, a competência do juízo da comarca de residência da criança.

Durante esse período, os adotantes podem desistir do processo de adoção, sem que haja incidência de reparação civil. No entanto, excepcionalmente, existe a possibilidade de indenização nos casos em que, por exemplo, o cumprimento do estágio de convivência ocorra exclusivamente nos lares dos adotantes.

Desistência Durante a Guarda Provisória

Quando o estágio de convivência é concluído com êxito, passa-se à etapa da guarda provisória, a qual, apesar de poder ser sucessivamente renovada, já impõe deveres parentais amplos aos adotantes em relação ao adotado. Há quem diga que a guarda provisória institui a relação paternal-filial, que se concretizará formalmente apenas após a sentença de adoção.

Nessa etapa, o adotado residirá integralmente na casa dos adotantes, sendo inserido por completo no seio da família do adotante. Por isso, a desistência da adoção durante esse estágio, pode ensejar reparabilidade por conta dos danos causados à criança ou ao adolescente, que já se sente parte da família.

A responsabilidade civil, nessa etapa, independe de dolo ou culpa, pois trata-se de uma ilicitude objetiva, visto que os adotantes incorrem em abuso de direito, em razão do rompimento com a convivência socioafetiva já consolidada (art. 187, CC).

Ocorre que a desistência é permitida justamente para proteger e resguardar os interesses dos adotados, e não para favorecer os adotantes. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu:

“A condenação por danos morais daqueles que desistiram do processo de adoção, que estava em fase de guarda, de forma abrupta e causando sérios prejuízos à criança, encontra guarida em nosso direito pátrio, precisamente nos art. 186 c/c arts. 187 e 927 do Código Civil. A previsão de revogação da guarda a qualquer tempo, art. 35 do ECA, é medida que visa precipuamente proteger e resguardar os interesses da criança, para livrá-la de eventuais maus tratos ou falta de adaptação com a família, por exemplo, mas não para proteger aqueles maiores e capazes que se propuserem à guarda e depois se arrependeram” (TJMG, AC 1.0024.11.049157-8/002, j. 15/04/2014).

Desistência após a Sentença de Adoção

Uma vez transitada em julgado a sentença, a adoção torna-se irrevogável:

ECA

Art. 39. [...]

§1º A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei.

Aqui, o adotado é considerado definitivamente filho dos adotantes e, por isso, não existe previsão legal de “desadoção”, visto que o filho, biológico ou adotado, assim o será para sempre. Desse modo, não é possível simplesmente renunciar à autoridade parental e às obrigações civis advindas do poder familiar.

Entretanto, ainda que seja irrevogável, o juiz deve proferir a sentença de “devolução” sempre com base no princípio do melhor interesse do adotado. É seu papel ponderar se o melhor para a criança ou o adolescente é permanecer na família, sabendo que seria contrário ao desejo dos adotantes e não haveria afetividade, ou retornar ao abrigo em busca de outra família. 

Em qualquer uma das hipóteses, o adotado sentirá mais uma vez o sofrimento da rejeição e, no caso de permanecer com a família que não o deseja, ainda corre riscos de agressão física ou abandono material.

Nessa etapa, a “devolução” do filho adotado configura ilícito civil e traz como consequências: (i) o amplo dever de indenizar e, talvez, um ilícito penal por abandono de incapaz (art. 133, CP), (ii) a impossibilidade de conseguir nova habilitação no cadastro nacional de adoção e (iii) a continuidade da obrigação alimentar, já que as responsabilidades civis permanecem.

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