Introdução

A tortura no Brasil é tipificada pela Lei 9455/97. Todavia, muito antes do advento dessa lei, inúmeros diplomas legislativos existiram principalmente no âmbito do direito internacional. Primeiramente, temos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral da ONU em 1948 que, em seu art. 5º, assim prevê:

Art. 5º
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Posteriormente, foi editado um tratado internacional específico contra a tortura, chamado de Convenção Contra a Tortura de 1984. Nesse contexto, a América também tratou do assunto em um tratado próprio, na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura de 1985.

Por fim, a Constituição Federal de 1988 determinou a proibição expressa da tortura, sendo tal proibição elencada no rol de direitos fundamentais do art. 5º, que passou a considerar a prática como crime inafiançável. Vejamos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
(...)
 XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; 
Desse modo, o entendimento doutrinário majoritário é pela vedação expressa da tortura e de sua criminalização, ou seja, a Lei 9455/97 simplesmente atende a um mandamento constitucionalmente previsto.

Natureza Jurídica

Uma dúvida muito comum é acerca da tortura ser ou não crime hediondo. Então, para que fique claro: tortura não é crime hediondo! O que ocorre é que ela é classificada como crime assemelhado ou equiparado ao hediondo por expressa determinação constitucional, recebendo o mesmo tratamento legal dado a este tipo de crime.

Nesse sentido, é importante pontuar que nem todos os crimes previstos na Lei de Tortura serão equiparados a crime hediondo. Na verdade, há um crime, de omissão de apuração da tortura, que está previsto na L. 9455 e que configura infração penal de médio potencial ofensivo. Este é o único crime previsto na L. 9455 que não é equiparado a um crime hediondo.

Previsão no ECA

O Estatuto da Criança e do Adolescente foi a primeira legislação infraconstitucional a conter previsão expressa da tortura, tendo esse direito sido resguardado de forma específica para essa parcela da população antes da promulgação da Lei 9455/95. Vejamos:

Art. 233. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura:
Pena - reclusão de um a cinco anos.
§ 1º Se resultar lesão corporal grave:
Pena - reclusão de dois a oito anos.
§ 2º Se resultar lesão corporal gravíssima:
Pena - reclusão de quatro a doze anos.
§ 3º Se resultar morte:
Pena - reclusão de quinze a trinta anos.

O problema desse dispositivo é que constitui conceito extremamente aberto. Foi, então, considerado inconstitucional por violar a taxatividade do direito penal, vez que não apresenta o conceito de tortura bem definido, o que daria margem a arbitrariedades e possíveis injustiças.

Além disso, outro problema é que a tortura contra o maior de 18 anos continuava sem tipificação. Diante disso, o art. 233 do ECA foi revogado completamente pela Lei 9455/95 (Lei de Tortura).

Teoria do Cenário da Bomba Relógio

Essa teoria é simples, sendo melhor explicada diretamente pelo exemplo. Vejamos:

Suponhamos que um terrorista tenha plantado uma bomba em algum local e essa bomba está prestes a explodir. O terrorista foi capturado, mas não se sabe o local da bomba. Diante dessa situação, o direito dos EUA permite o uso de tortura como método de interrogatória para que se descubra a localização dessa bomba, por se tratar de situação extrema e de luta contra o terrorismo.

Tal teoria prega, portanto, que os fins justificam os meios. Dado o cenário de grande perigo, é justificada a tortura como meio possível de resolução do problema. Afastam-se os direitos humanos de um indivíduo (ou de alguns indivíduos) visando a um bem coletivo maior. No Brasil, contudo, não se aceita essa teoria, sendo vedada a tortura em qualquer hipótese. Os direitos humanos são postos em primeiro lugar, invioláveis.

Competência

Via de regra, a competência para o processamento dos crimes da Lei de Tortura é da Justiça Comum. Porém, quando o crime é praticado por policial militar, a competência é da Justiça Militar. Esse entendimento foi firmado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região no julgamento do RESE 0001137-98.2019.4.01.3811/MG:

PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO CONTRA DECISÃO QUE DECLINOU DA COMPETÊNCIA PARA A JUSTIÇA MILITAR DO ESTADO. IMPUTAÇÃO DA PRÁTICA DO CRIME DE TORTURA DEFINIDO NO ART. 1º, I, “A”, DA LEI N. 9.455/97. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA PROMOVIDA PELA LEI N. 13.491/2017. CONSTITUCIONALIDADE PRESUMIDA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR. RECURSO NÃO PROVIDO.

1. Os fatos narrados nos autos se deram em 27/11/2017, portanto, após a entrada em vigor da Lei nº 13.491, de 13 de outubro de 2017, que alterou o art. 9º do Código Penal Militar para considerar como crime militar não apenas os crimes propriamente militares, que atingem bens jurídicos afetos à vida militar, mas também todos os previstos na legislação penal comum.

2. Hipótese em que ao recorrido é imputada a prática do crime de tortura valendo-se de sua condição de policial militar, situação descrita que se encaixa na redação do art. 9º, II, a, do Código Penal Militar, daí a competência da Justiça Militar, conforme decidido pelo magistrado a quo.

3. Inexistindo determinação de suspensão da aplicação da lei questionada, seja na ADI n. 5.804/RJ ou ADI n. 5.901/DF, não há fundamento para afastar a constitucionalidade do diploma normativo em questão. Em outros termos, prevalece a presunção de constitucionalidade da Lei n. 13.491/2017.

4. Recurso do MPF não provido.

(TRF1 – RECURSO EM SENTIDO ESTRITO N. 0001137-98.2019.4.01.3811/MG – RELATOR : DESEMBARGADOR FEDERAL NEY BELLO RELATOR CONVOCADO : JUIZ FEDERAL MARLLON SOUSA RECORRENTE : JUSTICA PUBLICA PROCURADOR : LAURO COELHO JUNIOR RECORRIDO : ANTONIO MARCOS AZEVEDO ADVOGADO : MG00110515 – RICARDO SILVA ELEUTERIO E OUTROS(AS). Data do julgamento: 18/02/2020 – Data da publicação: 02/03/2020)

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