Crimes contra o Sentimento Religioso - Noções Gerais
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu que o Estado Brasileiro é laico, ou seja, não adota nenhuma religião oficial e mantém-se imparcial em questões religiosas. Porém, o texto constitucional também prevê que os cidadãos têm a liberdade de exercício de religião e de crença, sendo esse um direito fundamental. Observe:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
A liberdade de consciência referida no texto envolve a liberdade de uma pessoa ter as suas próprias convicções, padrões éticos e morais. A liberdade de crença é a liberdade das pessoas de adotar ou não uma religião. Já a liberdade de culto refere-se a liberdade de a pessoa exercer na prática a sua religião.
A partir dessa garantia constitucional, o Código Penal tipificou algumas condutas praticadas contra a liberdade religiosa das pessoas. Trata-se do crime de ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo, expresso no artigo 208 do CP. Veja:
Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:
Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.
Parágrafo único - Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.
Estamos diante de um tipo misto cumulativo, ou seja, há três crimes dentro do artigo 208, quais sejam:
- Escarnecer alguém publicamente por motivo de crença ou função religiosa;
- Impedir ou perturbas cerimônia ou prática de culto religioso;
- Vilipendiar publicamente ato ou objeto religioso.
Nesse caso, com a prática de apenas um dos crimes já há a configuração do tipo penal. Além disso, se mais de um crime do artigo for praticado, há um concurso de crimes, quer dizer, o agente irá responder, cumulativamente, por quantos crimes vier a praticar e as penas serão somadas.
Vamos estudar melhor cada um desses crimes a seguir.
Escarnecer Alguém Publicamente por Motivo de Crença ou Função Religiosa
O verbo núcleo do tipo "ESCARNECER" significa zombar ou ridicularizar. A "crença religiosa" é a convicção pessoal de alguma doutrina ou divindade, e a "função religiosa" é o exercício de algum ministério no culto ou celebração.
É importante fazer uma distinção entre o artigo que estamos estudando com os artigos 139 e 140, ambos crimes contra a honra. Vamos ver os artigos na íntegra:
Art. 139 - Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Os crimes dos artigos 208, 139 e 140 são parecidos porque envolvem a intenção do agente em ofender a vítima. Como vimos, "ESCARNECER" é zombar, ridicularizar. "DIFAMAR" (art. 139) envolve imputar fato ofensivo com o viés de macular a reputação, e "INJURIAR" (art. 140) significa ofender a dignidade ou decoro de alguém.
Nesse ínterim, dependendo do caso prático, pode haver um conflito aparente de normas, ou seja, uma mesma conduta poderia se enquadrar em mais de um tipo penal. Para saber qual tipo penal aplicar, usamos o princípio da consunção ou absorção, mediante a qual o crime meio será absorvido pelo crime fim. Assim, por exemplo, se com o fim de escarnecer da crença religiosa, um indivíduo ofende o outro, tem-se que a ofensa é um meio para se alcançar o fim. Logo, o crime de injúria (art. 140) poderá ser absorvido pelo crime do art. 208 que estamos estudando.
Impedir ou Perturbar Cerimônia ou Prática de Culto Religioso
Os dois verbos núcleos do tipo são "IMPEDIR", que significa obstar que aconteça, e "PERTURBAR", ou causar transtorno. O "culto religioso", como visto, é a manifestação coletiva de adoração a uma divindade. A "cerimônia" é um culto revestido de solenidade. A "prática de ato religioso" é um ato individual. Em quaisquer desses casos, a conduta se enquadra no tipo penal estudado.
Vilipendiar Publicamente Ato ou Objeto de Culto Religioso
O verbo núcleo do tipo "VILIPENDIAR" significa menosprezar, ultrajar.
Classificação Doutrinária
Os três crimes do art. 208 do CP podem ser classificados doutrinariamente como:
- Crime comum: pode ser praticado por qualquer pessoa;
- Crime formal: a consumação independe da ocorrência do resultado naturalístico;
- Praticado de forma livre: o delito pode ser cometido de qualquer maneira, porque o tipo penal não prevê uma forma específica para a sua execução;
- Crime unissubjetivo: basta uma única pessoa praticar a conduta para a realização dele;
- Crime unissubsistente (composto por um único ato) ou plurissubsistente (a conduta pode ser fracionada em vários atos e, portanto, há possibilidade de tentativa);
- Crime instantâneo: há consumação imediata, em único instante, ou seja, uma vez encerrado está consumado.