Princípio do Nemo Tenetur Se Detegere
Princípio do nemo tenetur se detegere
O princípio do nemo tenetur se detegere pode ser entendido sumariamente como o direito que o indivíduo tem de não produzir provas contra si próprio.
A previsão constitucional desta garantia encontra-se no Art. 5º, LXIII, onde se lê que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.” Convém mencionar, entretanto, que o direito ao silencio é apenas uma das possibilidades de exercício do direito de não se auto incriminar.
A questão da vedação da auto incriminação é tratada de forma pioneira pela Convenção Americana de Direitos Humanos, na qual assentou-se a ideia de que toda pessoa acusada de um delito tem o “direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada” (Art. 8º, item 2, alínea “g”, CADH).
Titular do direito
Em regra, o indivíduo que foi preso, independentemente do tipo de prisão, goza do direito de não produzir provas conta si, cabendo ao Estado provar a sua culpa. Ele pode, inclusive, mentir, como veremos mais adiante. A doutrina majoritária, porém, sustenta que também qualquer pessoa que seja tão somente suspeita da prática de um crime pode valer-se da vedação à auto incriminação.
Diante desta última possibilidade, consideremos uma situação hipotética.
Imaginemos que um deputado federal seja suspeito de desvios de dinheiro de uma grande estatal brasileira. Imaginemos também que está muito difícil provar a sua culpa no inquérito em que é investigado. Suponhamos, ainda, que o mesmo deputado seja convocado a depor como testemunha em um Processo Penal que envolva outro réu. A ideia é obter a confissão, tendo em vista que as testemunhas têm o dever de dizer a verdade. Entretanto, a obrigação de dizer a verdade acabaria por forçar o congressista a renunciar a sua garantia de não se auto incriminar. Assim, como ele possui o direito de não produzir provas contra si, este último prevalece por ser mais benéfico. Fato este que torna perfeitamente lícita a postura do parlamentar, que permanece em silêncio, tendo em vista as consequências que uma eventual manifestação descuidada pode causar aos seus interesses pessoais.
Comunicação do direito
A Constituição Federal prevê a necessidade de que o preso seja informado não só do seu direito de permanecer em silêncio, mas, sobretudo, de que a sua opção por permanecer calado não poderá ser interpretada em seu desfavor no decorrer do processo judicial.
A importância da garantia é tamanha que o Supremo Tribunal Federal (STF), seguindo a posição da doutrina majoritária, entende que a não comunicação do preso acerca desse seu direito gera nulidade insanável, devendo ser desconsideradas todas as informações obtidas a partir da captura do preso.
A comunicação do direito de não produzir provas contra si mesmo tem suas raízes históricas no chamado “Miranda Rights”, sendo uma construção da jurisprudência norte americana no caso Miranda v. Arizona, no ano de 1966.
APLICAÇÃO PRÁTICA: Imaginemos um caso em que um suspeito que acabou de cometer um crime foi detido por populares e corre o risco de ser linchado. No exemplo, uma equipe de imprensa local acaba chegando ao local antes da polícia. Ao entrevistar o suspeito, ele revela que cometeu o crime, sendo que esta declaração é exposta na abertura do jornal televisivo horas após o ocorrido. O suspeito confessou o crime sem que ninguém o informasse acerca do seu direito de ficar em silêncio. Bom, o STF analisou questão semelhante no HC 99558 ocorrido no ano de 2010, oportunidade em que entendeu que a Constituição Federal impõe o dever de informar ao preso o seu direito de permanecer em silêncio apenas aos servidores públicos, de modo que tal obrigação não se aplica aos particulares. Assim, as declarações do preso dadas à imprensa poderão, sim, ser utilizadas em seu desfavor posteriormente.
Características do princípio
A primeira característica da vedação a auto incriminação é o próprio direito ao silêncio.
Outra característica, decorrente da primeira, é o direito de não ser forçado a confessar um delito.
Assim, caso um funcionário público force a confissão de alguém, ainda que o indivíduo seja de fato culpado, o funcionário poderá ser enquadrado no crime de tortura ou de abuso de autoridade, a depender do que foi feito no caso concreto.
A terceira característica é a inexigibilidade de dizer a verdade. Para alguns doutrinadores, isso significa que o suspeito tem o direito de mentir, posto que o Brasil não criminaliza o perjúrio. Esse entendimento, contudo, encontra resistência de parte da doutrina que argumenta no sentido de que um Estado Democrático não pode autorizar a prática de um comportamento anti-ético. Logo, o preso não tem o direito de mentir, muito embora não haja, em regra, nenhuma consequência se isso vier a acontecer. Diremos, então, que ele pode mentir, pois não há qualquer consequência nisso, mas não possui exatamente direito a tal, pois seria uma garantia estranha à ética.
A respeito disso, ressalvemos: a doutrina elenca dois tipos de mentira:
(i) As mentiras toleráveis (como quando o preso mente sobre o seu álibi) e as
(ii) mentiras agressivas, representadas pelos casos em que pode haver responsabilização criminal em momento posterior (como quando o suspeito mente ao dizer que o real autor do crime foi seu cunhado, sendo que este não cometeu crime algum).
No primeiro caso, a mentira não provoca qualquer dano à outrem, de tal sorte que, quando a polícia investigar e descobrir que o álibi era falso, nada acontecerá ao criminoso
Na segunda situação, porém, a mentira contada pelo suspeito faz com que um inocente seja investigado, motivo pelo qual o mentiroso responderá pelo crime de denunciação caluniosa, previsto no Art. 339 do Código Penal. Vê-se que não se tratou puramente de uma mentira, mas de um tipo penal.
A quarta característica é a possibilidade de que dispõe o suspeito de não praticar qualquer comportamento ativo que possa incriminá-lo.
Desta forma, sempre que a produção da prova depender da ajuda do suspeito, ele poderá recusar-se a prestar qualquer auxílio, de modo que sua recusa não configurará o crime de desobediência, mas sim exercício regular de um direito previsto constitucionalmente.
Assim, por exemplo, o sujeito não está obrigado a escrever qualquer coisa para eventual exame grafotécnico e nem comparecer a uma acareação.
A quinta característica é o direito de não produzir provas incriminadoras invasivas.
Para entender tal característica, é necessário, então, diferenciar as provas invasivas daquelas consideradas como não invasivas.
As provas invasivas são aquelas cuja produção exigem uma intervenção no corpo do suspeito numa forma em que seja possível a extração de células. Como exemplo, podemos citar o fornecimento de esperma, de sangue ou de cabelo.
As provas não invasivas, por sua vez, são aquelas que não exigem a retirada de células corporais do suspeito de maneira forçada. Como exemplo, temos o exame de DNA obtido por meio de cabelos localizados no pente do suspeito, bem como de bitucas de cigarro por ele jogadas fora.
O Código de Processo Penal não regula o tema das prova invasivas e não invasivas de forma específica. Entretanto, doutrina e jurisprudência entendem que, no caso das provas não invasivas, o exame pericial independe de autorização do suspeito.
Logo, fios de cabelo presentes no pente do suspeito, assim como as bitucas de cigarro que ele descartou poderão, sim, ser analisadas.
Diferentemente, as provas invasivas dependem do consentimento do suspeito para que sejam produzidas licitamente, sendo ilegal o ato de um policial arrancar os cabelos do preso a força, por exemplo.
Cumpre observar que, diversamente do que ocorre no Processo Penal, no qual vigora o principio da vedação a auto incriminação, a recusa em colaborar com determinadas investigações no âmbito do Processo Civil pode vir a produzir determinadas consequências jurídicas.
Como exemplo, temos os processos de investigação de paternidade. O suposto pai não é obrigado a fornecer sangue ou esperma para a realização do exame de DNA. Entretanto, sua recusa gera a presunção de que ele é o genitor da criança.
Princípio do nemo tenetur se detegere e a lei seca
A vedação à autoincriminação, isto é, o direito que o acusado tem de não produzir provas contra si mesmo, é garantia que parece estar em conflito com o espírito da chamada lei seca (Lei nº 11.705, de 19 de Junho de 2008), que alterou a redação de alguns dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
Inicialmente, é importante ter em mente que o CTB não prevê apenas infrações administrativas, mas também crimes.
Assim acontece, por exemplo, com a previsão constante do Art. 277, segundo o qual “o condutor de veículo automotor envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito poderá ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que, por meios técnicos ou científicos, na forma disciplinada pelo Contran, permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência.”
O §3º do mesmo artigo prevê também que, caso o indivíduo se recuse a submeter-se a tais exames, será punido com multa, suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses, recolhimento do documento de habilitação ou até mesmo com a retenção do veículo.
A despeito do conflito aparente entre a lei e o princípio acima referido, tais punições são totalmente válidas do ponto de vista legal, uma vez que o principio do nemo tenetur se detegere somente isenta o agente de responsabilidade no âmbito criminal.
A aplicação da sanção prevista no CTB toma como base o mesmo raciocínio empregado à recusa do suposto genitor em fazer o exame de DNA para fins de comprovação da paternidade: a pessoa pode até não colaborar, mas arcará com as consequências do seu ato.
No âmbito criminal, porém, a questão torna-se essencialmente mais delicada.
Com efeito, não há dúvidas de que a melhor forma de se descobrir se alguém está embriagado é pelo exame de sangue. Todavia, a realização deste exame é complexa, já que necessita do auxílio de profissionais da área da saúde, como enfermeiros, e, por esta razão, o bafômetro foi criado como uma forma mais prática de se aferir a quantidade de álcool por litro de sangue, conforme a quantidade de ar pulmonar expelida. O grande problema, contudo, reside no fato de que aquele que dirige bêbado simplesmente não está obrigado a fazer o teste do bafômetro, o que, a primeira vista, poderia significar a impunidade daqueles que cometem esse tipo de imprudência. Todavia, examinando o texto da lei de maneira mais cuidadosa, é possível notar que a lei não isenta o indivíduo de punição: é possível que o condutor alcoolizado seja punido independentemente do resultado do bafômetro. No entanto, para compreender-se a previsão legal, faz-se necessário revisitar o histórico do crime de direção sobre embriaguez.
Na redação original do Art. 306 do CTB, datada de 1998, o crime previsto era descrito da seguinte maneira: “conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influencia de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem.
Aparte final do dispositivo permite-nos notar que trata-se de um crime de perigo concreto. Ou seja: não bastava a prova de que o indivíduo estava bêbado, mas sim provas de que ele apresentava riscos ao trânsito ao conduzir o veículo neste estado.
Logo, a pessoa poderia estar bebendo uma garrafa de vodka no carro e, mesmo assim, não ser punida se estivesse respeitando as normas de trânsito!
Entretanto, como são frequentes os relatos de falecimento, paraplegia ou perdas de membros em acidentes de trânsito, o legislador resolveu endurecer a punição a quem dirigia embriagado, modificando a redação do Art. 306 do CTB no ano de 2008.
A nova redação previa que era crime de direção sob efeito de embriaguez “conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.
Como se observa, o crime tornou-se de perigo abstrato, de modo que o agente responderia criminalmente pela prática do delito simplesmente por estar dirigindo embriagado, não importando o fato dele estar cumprindo as normas de trânsito ou não.
Ocorre, porém, que o tipo penal passou a exigir uma característica muito específica do criminoso.
A concentração de álcool equivalente a 6 (seis) decigramas por litro no sangue do suposto motorista embriagado só poderia ser provada através de exame de sangue ou bafômetro. Mas, ora, o princípio do nemo tenetur se detegere retira do sujeito a obrigação de fornecer sangue para o exame ou de assomprar o bafômetro quando assim seja solicitado pela autoridade. Assim, embora o legislador quisesse endurecer a previsão relacionada à embriaguez ao volante, este acabou por promover a impunidade, na medida em que se criou um delito impossível de se provar sem a conduta ativa do suspeito.
A situação somente foi corrigida no ano de 2012, com promulgação da atual redação do sobredito Art. 306 do CTB, que manteve a natureza jurídica do crime como delito de perigo abstrato, mas permitiu que a prova da embriaguez fosse feita por outros meios que não aqueles cuja a participação do suspeito era essencial.
Atualmente, portanto, o crime de direção sob o efeito de embriaguez passou a ser entendido como o fato de “conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”, estando positivado também que “a verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia ou toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova. (Art. 306,§2º, CTB)”
Logo, basta a identificação do estado de embriaguez para que o sujeito responda criminalmente, não sendo mais necessária a realização de exame de sangue ou bafômetro para prova da embriaguez.
Nesse sentido, vídeos da pessoa bebendo, testemunhas que confirmem o fato ou exame clínico realizado por médico são exemplos de meios aptos a comprovar o ocorrido.