Segurança Jurídica no Direito Administrativo

Outro princípio que não está expresso no art. 37, caput, da Constituição Federal, mas que pode ser deduzido do texto constitucional e das normas infraconstitucionais é o princípio da segurança jurídica. De acordo com o professor Paulo Modesto, o princípio da segurança pode ser desmembrado em:

  • Segurança "do" direito;
  • Segurança "no" direito;
  • Segurança "pelo" direito.

Segurança do Direito

Em primeiro lugar, para que haja segurança jurídica, é preciso ter segurança "do" direito, ou seja, um ordenamento jurídico marcado pela objetividade, clareza e previsibilidade acerca da legalidade ou ilegalidade de condutas.

Para que exista de fato essa previsibilidade, é preciso que o texto legal seja construído de maneira clara e precisa, indicando de forma explícita o que é permitido e proibido, bem como as consequências da violação de normas jurídicas. Além disso, é importante que todos os textos normativos sejam articulados e harmônicos entre si, evitando antinomias, ou seja, normas que sejam contraditórias entre si. Finalmente, é requisito importante para se atingir a segurança do direito a simplificação da legislação, quer dizer, as normas devem ser construídas da maneira mais simples possível.

O direito busca promover essa segurança ao exigir que as leis sejam redigidas com clareza, precisão e ordem cronológica, como diz o art. 11 da Lei Complementar 95/98:

Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica [...].

Outro exemplo da busca do ordenamento jurídico brasileiro em promover a segurança do direito é o que consta no art. 2º do Estatuto da Cidade. Observe:

Art. 2º.  A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: [...]

XV – simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais;

Segurança no Direito

Uma segunda faceta da segurança jurídica é a chamada segurança "no" direito, a qual impõe o respeito a situações jurídicas constituídas, a garantia de mínima estabilidade nas relações e a proteção da confiança dos indivíduos em relação ao sistema jurídico/legislação e ao Estado/Administração Pública.A legislação administrativa prevê vários mecanismos para buscar a segurança no direito. Podemos citar como exemplos:

  • A Lei de Processo Administrativo Federal veda a retroatividade de nova interpretação, ou seja, a Administração Pública não pode usar uma nova interpretação de um texto legal para modificar situações jurídicas já constituídas no passado sob outra interpretação;
  • A LINDB exige que situações passadas sejam examinadas à luz das orientações da época;
  • O ordenamento jurídico limita o poder anulatório da Administração Pública em relação aos sujeitos de boa-fé (art. 54 da Lei de Processo Administrativo Federal);
  • A LINDB protege o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Segurança pelo Direito

A terceira faceta da segurança jurídica é a segurança "pelo" direito, quer dizer, o direito precisa oferecer meios e remédios de defesa contra ameaça a situações jurídicas estabilizadas, como o ato perfeito, a coisa julgada, os direitos adquiridos, entre outros.

O direito garante essa segurança, por exemplo, ao:

  • Criar mecanismos de controle interno e externo, inclusive social, da Administração;
  • Garantir o acesso ao Judiciário diante de ilegalidades ou abusos (há várias ações especiais para isso, por exemplo: mandado de segurança, mandado de injunção, habeas data, entre outras);
  • Oferecer ações judiciais especiais para combater falhas da Administração.

Manifestações da Segurança Jurídica

Podemos dividir as manifestações da segurança jurídica em dois blocos, quais sejam:

  • Manifestações expressas no ordenamento jurídico;
  • Manifestações construídas pela doutrina e pela jurisprudência.

Nesta aula, foram dados vários exemplos de manifestações da segurança jurídica expressas no ordenamento, como:

  1. Irretroatividade da nova interpretação;
  2. Decadência do poder anulatório;
  3. Motivação por abandono de jurisprudência firmada;
  4. Consideração de orientações de exame de legalidade etc.

Além disso, existem teorias construídas pela doutrina e pela jurisprudência que também visam a promoção da segurança jurídica, por exemplo:

  • A teoria do fato consumado;
  • A teoria do agente/funcionário de fato; e
  • A teoria da autovinculação.

Teoria do Fato Consumado

A teoria do fato consumado sugere a manutenção de situações jurídicas estabilizadas e autorizadas por uma decisão anterior precária, ainda que a decisão final a entenda ilegal.

A título de exemplo, podemos imaginar um estudante que conseguiu ingressar em uma universidade pública com base em uma decisão judicial liminar, mas cujo mérito é examinado somente após sua colação de grau e, na decisão final, os magistrados entendem que a matrícula do estudante na graduação foi indevida. Nesse caso, a graduação é um fato consumado e, por isso, exige a proteção da posição jurídica. Assim, a decisão não surte qualquer efeito na prática. Sobre um caso como esse, veja a seguinte decisão do STJ (REsp 709.934-RJ, Rel. Min. Humberto Martins, 2007):

ADMINISTRATIVO DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS MATÉRIA AFETA AO STF MILITAR TRANSFERÊNCIA EX OFFICIO ENSINO SUPERIOR MATRÍCULA DE DEPENDENTE CONGENERIDADE DECURSO DE 6 ANOS DA CONCESSÃO DA SEGURANÇA APLICAÇÃO DA TEORIA DO FATO CONSUMADO.

1. A apreciação de suposta ofensa a preceitos constitucionais não é possível na via especial, nem à guisa de prequestionamento; porquanto matéria reservada, pela Carta Magna, ao Supremo Tribunal Federal.

2. É assegurado o direito à transferência obrigatória de servidor militar estudante e de seus dependentes quando ele tenha sido removido ex officio e no interesse da Administração Pública, desde que a instituição de ensino seja congênere à de origem; ou seja, de pública para pública ou de privada para privada, caso dos autos.

3. Entretanto, na hipótese dos autos, verifica-se que, entre a sentença que concedeu a segurança tornando possível a matrícula da ora recorrida na UFRJ e a presente data, decorreram aproximadamente seis anos.

4. Impõe-se, no caso, a aplicação da Teoria do Fato Consumado, segundo a qual as situações jurídicas consolidadas pelo decurso do tempo, amparadas por decisão judicial, não devem ser desconstituídas, em razão do princípio da segurança jurídica e da estabilidade das relações sociais.

Recurso especial conhecido em parte e improvido.

Teoria do Fato Consumado e Concurso Público

O STF entende que a teoria do fato consumado não se aplica para manter indivíduos que tenham assumido cargos públicos precariamente por decisão judicial liminar, não confirmadas ao final do processo (STF, RE 608.482, Rel. Min. Teori Zavascki, 2014):

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO REPROVADO QUE ASSUMIU O CARGO POR FORÇA DE LIMINAR. SUPERVENIENTE REVOGAÇÃO DA MEDIDA. RETORNO AO STATUS QUO ANTE. “TEORIA DO FATO CONSUMADO”, DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA LEGÍTIMA E DA SEGURANÇA JURÍDICA. INAPLICABILIDADE. RECURSO PROVIDO.

1. Não é compatível com o regime constitucional de acesso aos cargos públicos a manutenção no cargo, sob fundamento de fato consumado, de candidato não aprovado que nele tomou posse em decorrência de execução provisória de medida liminar ou outro provimento judicial de natureza precária, supervenientemente revogado ou modificado.

2. Igualmente incabível, em casos tais, invocar o princípio da segurança jurídica ou o da proteção da confiança legítima. É que, por imposição do sistema normativo, a execução provisória das decisões judiciais, fundadas que são em títulos de natureza precária e revogável, se dá, invariavelmente, sob a inteira responsabilidade de quem a requer, sendo certo que a sua revogação acarreta efeito ex tunc, circunstâncias que evidenciam sua inaptidão para conferir segurança ou estabilidade à situação jurídica a que se refere.

3. Recurso extraordinário provido.

Teoria da Autovinculação

A teoria da autovinculação é também conhecida como teoria dos atos próprios ou da proibição do venire contra factum proprium. Nesse caso, o Poder Público deve manter a coerência em suas ações, sobretudo quando os cidadãos de boa-fé nelas confiam e as utilizam para guiar suas próprias condutas particulares. Sendo assim, é incompatível com a segurança jurídica a contradição comportamental imotivada, desarrazoada, ardilosa ou realizada de má-fé pelo agente público.

Mais recentemente, a Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro (LINDB) absorveu em grande parte a teoria da autovinculação em alguns dispositivos. A LINDB, por exemplo, exige que se respeitem as manifestações prévias contidas em respostas a consultas e súmulas expedidas pela Administração Pública, ou seja, se o Estado respondeu a uma consulta ou a uma súmula no passado, deverá também observar essa resposta que deu ao tratar do caso no futuro. Ademais, a LINDB também prevê a observância de orientações administrativas da época da prática do ato sempre que se examinar sua legalidade.

Resumindo, a Administração Pública deve agir de maneira coerente, harmônica, evitando tomar decisões surpresa, ignorar interpretações que adotou no passado e evitar contradições no dia a dia. Na prática, a teoria da autovinculação reduz a discricionariedade da Administração Pública, ou seja, a liberdade de ação administrativa, sujeitando o Estado a atuar de forma coerente com o ordenamento.

Teoria do Agente de Fato

A teoria do agente/funcionário de fato busca garantir a manutenção da eficácia jurídica de atos praticados por sujeitos incompetentes em favor de um cidadão de boa-fé, que acreditou no ato, perante a Administração Pública.

É o caso, por exemplo, do ato administrativo editado por indivíduos que usurpam funções públicas, como o particular, não concursado, que indevidamente exerce atividades de médico ou docente. Pela teoria do agente de fato, são mantidos os atos praticados a despeito da incompetência do sujeito que agiu como servidor público.

De acordo com a doutrina, há dois requisitos para que se aplique em um caso concreto a teoria do agente de fato:

  1. Comprovar que o destinatário do ato plausivelmente considerou legal o exercício da função pública, ou seja, que o destinatário do ato acreditou que a pessoa que estava no exercício da função administrativa tinha todos os requisitos para exercê-la ; e
  2. Comprovar que o destinatário seria injustamente afetado pela anulação.

O STF estende a aplicação da teoria do agente de fato também para situações em que um agente público atua indevidamente em outra função (STF, RE 78209, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, 1974):

OFICIAIS DE JUSTIÇA - EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES POR AGENTES DO EXECUTIVO.

I - MESMO DECLARADA A INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI QUE COLOCOU AGENTES DO EXECUTIVO A DISPOSIÇÃO DOS JUIZES, PARA EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES DE OFICIAIS DE JUSTIÇA, ESSES SERVENTUARIOS NÃO SÃO USURPADORES, MAS FUNCIONÁRIOS DO ESTADO COM DEFEITO DE COMPETÊNCIA.

II - SE O DIREITO RECONHECE A VALIDADE DOS ATOS ATÉ DE FUNCIONÁRIOS DE FATO, ESTRANHOS AOS QUADROS DO PESSOAL PÚBLICO, COM MAIOR RAZÃO HÁ DE RECONHECE-LA SE PRATICADOS POR AGENTES DO ESTADO NO EXERCÍCIO DAQUELAS ATRIBUIÇÕES POR FORÇA DE LEI, QUE VEIO A SER DECLARADA INCONSTITUCIONAL.

III - E VALIDA A PENHORA FEITA POR AGENTES DO EXECUTIVO, SOB AS ORDENS DOS JUIZES, NOS TERMOS DA LEI ESTADUAL DE SÃO PAULO, S/N, DE 3.12.1971, MORMENTE SE NENHUM PREJUIZO DISSO ADVEIO PARA O EXECUTADO.

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