Noções Gerais
O Direito inglês é um dos movimentos mais tradicionais e influentes no cenário mundial.
Com a expansão do Império Britânico, o sistema de common law foi exportado para várias colônias. No entanto, muitos países que adotaram o common law também incorporaram aspectos de outros sistemas jurídicos, criando uma fusão de tradições.
A ideia de conservadorismo que caracteriza a cultura inglesa também se refletiu no sistema jurídico, promovendo estabilidade que é sinônimo da manutenção das instituições e das normas que regulam o cotidiano.
Estabilidade
A estabilidade institucional e jurídica remete, inevitavelmente, à Inglaterra e ao Reino Unido.
Dentro desse contexto, o Direito inglês se destaca por diversos aspectos que acabaram influenciando outros países.
Um exemplo é o princípio da soberania do Parlamento, onde o poder legislativo prevalece sobre os demais. Esse princípio reflete a limitação dos poderes monárquicos, um processo que se consolidou quando a Inglaterra passou de uma monarquia absolutista para uma monarquia parlamentarista.
Além disso, a estabilidade na criação e interpretação das leis é outro reflexo do conservadorismo jurídico inglês, que vai além do campo social e político, sendo também uma característica jurídica que foi posteriormente absorvida por outros países.
Common law
A Inglaterra é considerada o berço do constitucionalismo historicista, um dos três movimentos mais importantes da era moderna, juntamente com a França e os Estados Unidos.
Dentro desse sistema, uma das principais marcas é o Common Law, que consiste na prática de consultar decisões passadas para orientar decisões futuras.
Em outras palavras, decisões anteriores influenciam as decisões seguintes, podendo ter uma eficácia meramente persuasiva ou, em alguns casos, vinculante, quando emanadas das Cortes Superiores da Inglaterra.
Estas Cortes, ao emitirem decisões, muitas vezes conferem a essas decisões um efeito vinculante, conhecido como "Biding Effect".
É a partir desse efeito vinculante que o Common Law foi se desenvolvendo ao longo da história.
Por séculos, decisões judiciais passadas serviram de referência para decisões futuras, gerando força normativa que, com o passar do tempo, acabou sendo reconhecida como verdadeira atividade legislativa exercida pelo Poder Judiciário.
Essa atividade legislativa significa, essencialmente, a capacidade dos tribunais de criar leis por meio de decisões. Ou seja, na Inglaterra, as decisões judiciais têm força de lei, e os tribunais podem, de fato, fazer leis.
Características
- Precedentes (stare decisis): as decisões anteriores de tribunais superiores têm um peso significativo, estabelecendo precedentes obrigatórios que devem ser seguidos por tribunais inferiores em casos semelhantes. Isso cria um sistema de jurisprudência onde as leis evoluem com base em decisões passadas.
- Fonte de Direito: a principal fonte de direito no common law são as decisões judiciais. Embora existam leis escritas e estatutos, a interpretação e aplicação dessas leis são altamente influenciadas pelos precedentes.
- Papel do juiz: o juiz tem um papel ativo na criação e interpretação do direito, pois suas decisões podem criar novas normas jurídicas. Isso difere do civil law, onde o juiz aplica normas preexistentes de maneira mais restrita.
- Flexibilidade: o sistema de common law é considerado mais flexível, pois permite que o direito se adapte a novas situações e mudanças sociais sem a necessidade de reformas legislativas constantes. No entanto, essa flexibilidade também pode trazer um grau de incerteza jurídica, já que o direito está em constante evolução.
- Júri: muitos sistemas de common law utilizam o júri para decidir questões de fato, especialmente em casos criminais. Isso contrasta com o civil law, onde a decisão é geralmente tomada por juízes.
Soberania do Parlamento
Contudo, esse poder de legislar não é ilimitado.
Como em qualquer Estado moderno de Direito, ele é restringido pela atividade do Parlamento.
A soberania do Parlamento, como mencionado anteriormente, é um dos pilares constitucionais do sistema inglês, sendo uma bússola fundamental para a organização do Estado.
Os estatutos, ou atos parlamentares, que são as leis aprovadas pelo Parlamento, prevalecem sobre as decisões do Executivo e do Judiciário.
Assim, apesar do poder dos tribunais de criar normas jurídicas por meio de suas decisões, essas normas podem ser sobrepostas por uma nova lei aprovada pelo Parlamento. Isso ilustra o princípio da soberania do Parlamento: embora as decisões judiciais sejam vinculantes, elas não podem contrariar as leis elaboradas pelo poder legislativo.
Espécies normativas
Portanto, para compreender o direito inglês, é fundamental reconhecer a existência de duas principais espécies normativas:
- o Common Law, que reflete a prática judiciária de vinculação de decisões; e
- os estatutos ou atos parlamentares, que representam a manifestação da soberania legislativa.
Além dessas, existe uma terceira espécie normativa que é crucial para entender o sistema inglês: as Convenções Constitucionais.
Tratam-se de práticas não escritas, mas que se tornaram tão enraizadas no sistema jurídico inglês que raramente são questionadas. Um exemplo é o processo legislativo.
Assim como no Brasil, o Parlamento inglês é bicameral, composto pela Câmara dos Comuns e pela Câmara dos Lordes.
Ambas as casas precisam aprovar uma lei antes que ela seja submetida ao Decreto Real, que é a sanção final do monarca.
Embora, teoricamente, o monarca tenha o poder de vetar uma lei, isso não acontece há mais de 300 anos.
Existe uma convenção constitucional que determina que, uma vez que as duas casas aprovem uma lei, o monarca deve simplesmente sancioná-la, sem questionamentos.
Essa prática demonstra a estabilidade e o conservadorismo presentes no sistema jurídico inglês.
Portanto, ao estudar o Direito inglês, é essencial compreender essas três fontes fundamentais: as Convenções Constitucionais, que refletem práticas não escritas; o Common Law, que é o motor do Poder Judiciário; e os estatutos ou atos parlamentares, que são a expressão da soberania legislativa.
A coerência foi alcançada por meio de três fontes principais:
- Common law (instrumento do Poder Judiciário);
- Atos do parlamento (relacionados ao poder legislativo; e
- Convenções constitucionais (também ligadas ao legislativo).
Agora, será abordada a Constituição Inglesa, que une todas essas fontes normativas.
Características
A Constituição Inglesa deve ser vista de maneira muito diferente da Constituição brasileira.
Enquanto a brasileira é mais recente, codificada e concentrada em um único documento, a Constituição inglesa é histórica, não escrita, e principiológica.
Isso significa que ela valoriza menos as palavras específicas e se apega mais aos valores duradouros que guiaram o sistema jurídico ao longo do tempo.
Essas características moldam o funcionamento do common law, dos atos do parlamento e das convenções constitucionais, que derivam da valorização do aspecto histórico, da ausência de codificação formal e da prevalência de normas-princípio, em oposição às normas-regras mais típicas do sistema brasileiro.
Histórica
A característica de ser histórica reflete a valorização das instituições passadas da Inglaterra, que continuam a influenciar o presente.
A Constituição inglesa se desenvolveu ao longo dos séculos, sem um momento único de criação ou um documento fundacional, como uma declaração de independência ou uma convenção constituinte.
Ela evoluiu gradualmente através de decisões judiciais, costumes, atos parlamentares e eventos políticos importantes, como a Magna Carta (1215), o Bill of Rights (1689) e outros marcos legislativos.
Não houve uma ruptura revolucionária ou um ato de fundação que delimitasse um ponto inicial fixo para a Constituição.
Na próxima aula, serão abordados aspectos históricos e como temas discutidos no século X permanecem relevantes até hoje, sendo reinterpretados pelo Poder Judiciário e pelo Poder Legislativo.
Não escrita
Já o fato de a Constituição inglesa ser não escrita significa que não há um único documento que consolide todos os seus valores constitucionais.
É mais preciso dizer que ela é "não codificada", pois, nos últimos anos, alguns princípios passaram a ser registrados em documentos, ainda que não exista um texto único chamado "Constituição Inglesa".
Assim, trata-se de um conjunto de valores, alguns formalizados, outros não, mas que não estão concentrados em um único documento.
Principiológica
Por fim, a Constituição inglesa é principiológica, ou seja, dá preferência a normas-princípio em vez de normas-regras.
A diferenciação entre normas-princípio e normas-regra foi amplamente desenvolvida pelo jurista alemão Robert Alexy.
Os princípios são normas jurídicas que estabelecem valores ou diretrizes fundamentais, sendo mais abstratos e abertos do que as regras. Eles orientam a criação e a interpretação de normas específicas e guiam o sistema jurídico para alcançar determinados fins, como a justiça, a igualdade, a dignidade da pessoa humana, etc.
As regras são normas jurídicas mais específicas e determinadas, que indicam condutas precisas, podendo ser cumpridas ou descumpridas. Elas dizem claramente o que é permitido, proibido ou obrigatório em determinadas circunstâncias. Em outras palavras, as regras possuem um caráter mais concreto e estabelecem soluções imediatas para situações jurídicas.
Isso significa que as normas do Direito inglês são mais abstratas e menos densas, o que permite que elas sejam aplicadas a um maior número de situações e, por consequência, durem mais tempo no ordenamento jurídico.
Assim, a Constituição inglesa é baseada em princípios amplos e valores que regulam a estrutura política e a relação entre o governo e os cidadãos. Esses princípios incluem a soberania parlamentar, o respeito às liberdades individuais, o Estado de Direito e a separação dos poderes.
Normas específicas tendem a se desatualizar rapidamente, pois a realidade muda mais rápido do que o direito. Para acompanhar essa realidade dinâmica, as normas-princípio permanecem por mais tempo, proporcionando maior estabilidade.
Com essa estabilidade, a Constituição se torna cada vez mais histórica, e, quanto mais histórica ela se torna, menos necessidade há de formalizar esses valores em texto. Isso porque, quanto mais se escreve, mais se busca garantir segurança jurídica.
Comparação com a brasileira
A Constituição brasileira, em contraste com a inglesa, é codificada, escrita, dogmática e rigidamente democrática.
A Constituição do Brasil está reunida em um único documento formal e detalhado, promulgado em 5 de outubro de 1988.
Isso significa que todas as normas e princípios fundamentais que regem o Estado brasileiro e garantem os direitos dos cidadãos estão expressos de maneira clara e sistemática em um texto único.
A Constituição brasileira é considerada dogmática porque contém normas e princípios fundamentais que foram deliberadamente inseridos por um processo constituinte.
Esses princípios são expressos de maneira formal e rígida, definindo os valores centrais da República Federativa do Brasil, como a soberania popular, a dignidade da pessoa humana, a separação dos poderes, e o Estado Democrático de Direito. Esses princípios orientam toda a estrutura jurídica e política do país.
Além disso, é rígida porque seu processo de alteração é complexo e exige um procedimento legislativo especial, mais difícil do que o de leis ordinárias.
Para que uma emenda constitucional seja aprovada, é necessário o apoio de três quintos dos membros do Congresso Nacional, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, em dois turnos de votação em cada casa. Isso confere estabilidade ao texto constitucional e evita mudanças frequentes ou arbitrárias.
Finalmente, a Constituição de 1988, conhecida como "Constituição Cidadã", é fortemente democrática e assegura uma ampla gama de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais. Ela garante direitos fundamentais, como o direito ao voto, a liberdade de expressão, o direito de manifestação e a proteção das minorias.
Além disso, a Constituição define a participação popular em processos como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, reforçando o caráter participativo do regime democrático brasileiro.
Pirâmide normativa
Assim, tomando como referência a pirâmide normativa de Hans Kelsen, a Constituição Inglesa está no topo.
Abaixo dela estão os estatutos (atos do parlamento) e as convenções constitucionais, que, embora não sejam formalmente escritas, são práticas de extrema importância.
Por fim, as decisões judiciais, algumas com efeito vinculante, outras com efeito meramente persuasivo. As decisões vinculantes orientam casos futuros, reforçando a relação entre passado e futuro no common law, em que novas decisões se inspiram em precedentes.
Convenções da União Europeia
As convenções europeias da União Europeia também eram fonte do Direito Inglês, mas elas perderam validade após o Reino Unido sair da União Europeia no movimento conhecido como Brexit.
No entanto, a Inglaterra ainda segue outras fontes internacionais, como os tratados de direitos humanos, tanto do sistema europeu de direitos humanos (paralelo à União Europeia) quanto do sistema da ONU.
A Inglaterra, inclusive, faz parte do Conselho de Segurança da ONU, o que reforça sua participação em tratados internacionais.
Para saber mais
O Brexit foi o processo de saída do Reino Unido da União Europeia, motivado por questões de soberania, controle da imigração e o custo de contribuição ao bloco europeu.
Em 23 de junho de 2016, um referendo foi realizado, resultando em 51,9% dos votos a favor da saída e 48,1% pela permanência.
O primeiro-ministro David Cameron, que defendia a permanência, renunciou, e Theresa May assumiu o cargo para liderar o processo.
O Brexit envolveu negociações complexas sobre comércio, direitos dos cidadãos e a fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda.
Em 2017, o Reino Unido acionou o art. 50 do Tratado da União Europeia, iniciando oficialmente a saída.
Theresa May teve dificuldades para aprovar o acordo de saída no Parlamento e renunciou em 2019, sendo substituída por Boris Johnson, que renegociou e conseguiu aprovar o acordo. Em 31 de janeiro de 2020, o Reino Unido saiu oficialmente da UE.
O Brexit trouxe consequências significativas. No comércio, o Acordo de Comércio e Cooperação entre o Reino Unido e a UE foi assinado em 2020, permitindo comércio sem tarifas, mas com mais burocracia.
A questão da fronteira irlandesa foi tratada com o Protocolo da Irlanda do Norte, mantendo a região alinhada a algumas regras europeias, o que gerou insatisfação entre os unionistas.
No campo da imigração, o Reino Unido introduziu um sistema de pontos para controlar a entrada de trabalhadores qualificados.
Economicamente, o Brexit trouxe desafios, com maior burocracia para empresas que exportam para a UE e impactos no setor financeiro.
Além disso, o Brexit acentuou divisões internas, especialmente na Escócia, onde a maioria votou pela permanência na UE, renovando debates sobre a independência escocesa.