Hipossuficiência e Direitos Básicos do Consumidor

Vulnerabilidade e hipossuficiência

O direito do consumidor parte do pressuposto de que consumidor e fornecedor não estão em posição jurídica de igualdade. Dizemos que o consumidor é considerado vulnerável (art. 4º, I, CDC) e pode ser hipossuficiente (art. 6 º, VIII, CDC).

Vulnerabilidade

A vulnerabilidade do consumidor está ligada ao direito material, à posição jurídica desfavorável do consumidor dentro da relação de consumo (dificuldade para utilização do bem ou serviço, dependência da forma como o bem é produzido ou o serviço prestado, trato com o fornecedor que pode ser dificultoso, etc.).

 A doutrina Claudia Lima Marques define a vulnerabilidade como:

"Uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação de consumo. Vulnerabilidade é uma característica, um estado do sujeito mais fraco, um sinal de necessidade de proteção". - MARQUES, Cláudia Lima et al. Manual de direito do consumidor, p. 87.

Conforme o CDC, em matéria consumerista, há presunção absoluta da vulnerabilidade do consumidor.

A doutrina costuma identificar certos tipos de vulnerabilidade:

  • Informacional: relacionada ao déficit de consciência do consumidor nas relações consumeristas, deixando o fornecedor em posição privilegiada. O problema configura-se tanto na falta de informações que permitam um consumo consciente e acertado quanto no excesso de informações ou em informações manipuladas divulgadas pelo fornecedor.
  • Técnica: refere-se ao desconhecimento técnico do produto ou serviço pelo consumidor, de forma que o fornecedor acaba tendo vantagem na relação contratual.
  • Jurídica/Científica: refere-se à falta de conhecimentos jurídicos específicos, ou conhecimentos de contabilidade ou de economia do consumidor comum (não profissional e não pessoa jurídica). Para pessoas jurídicas, vale a presunção em contrário!
  • Fática ou socioeconômica: refere-se ao desequilíbrio de poderes econômicos entre consumidor e fornecedor. O consumidor frequentemente possui menos poder econômico que o fornecedores, diminuindo seu poder de negociação e reclamação.

Hipossuficiência

A hipossuficiência está ligada ao direito processual, à posição desfavorável do consumidor dentro da relação processual advinda de uma ação consumerista (dificuldade de produzir provas, etc.).

Diferentemente da vulnerabilidade, a hipossuficiência decorre de uma situação fática e não jurídica. É personalíssima: diz respeito àquele indivíduo em particular e não ao grupo a que pertence (ex: consumidor). Por isso, a existência de hipossuficiência do consumidor deve ser aferida pelo juiz caso a caso, sendo assim de presunção relativa.

A hipossuficiência do consumidor pode dizer respeito a dois aspectos:
  • Necessidade de assistência judiciária (benefício da justiça gratuita) aos comprovadamente pobres;
  • Necessidade de inversão do ônus da prova (incumbir ao fornecedor o dever de provar os direitos que alega).
Veremos mais sobre a inversão do ônus da prova mais adiante.

Direitos Básicos do Consumidor

O art. 6º do CDC lista nove direitos básicos do consumidor, com destaque aos incisos VI, VII e VIII que tratam, respectivamente, da efetiva reparação de danos, do acesso à justiça e da facilitação da defesa e inversão do ônus da prova.

 Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
        I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;
        II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;
       III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;
       IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;
        V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
        VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;
        VII - o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;
        VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;
        IX - (Vetado);
        X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.
        Parágrafo único.  A informação de que trata o inciso III do caput deste artigo deve ser acessível à pessoa com deficiência, observado o disposto em regulamento

Somam-se aos direitos listados acima todos os outros constantes no resto do ordenamento jurídico brasileiro, incluindo a legislação ordinária, regulamentos da Administração Pública, tratados e convenções internacionais que o Brasil assinar, bem como os decorrentes dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade (art. 7º).

Acesso à justiça

Além do inciso VII do art. 6º do CDC, que trata do acesso a órgãos judiciários e administrativos para pleito de reparação de danos, outros artigos do CDC também cuidam do acesso do consumidor à justiça.

Art. 87 - Flexibilidade no pagamento de valores decorrentes do processo:

    Art. 87. Nas ações coletivas de que trata este código não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogados, custas e despesas processuais.

Os emolumentos devem ser entendidos como as taxas remuneratórias de serviços públicos (cartório notarial ou de registro) a serem pagas pelo requerente de determinado serviço.

Veja: há exceção para essa flexibilização:

        Parágrafo único. Em caso de litigância de má-fé, a associação autora e os diretores responsáveis pela propositura da ação serão solidariamente condenados em honorários advocatícios e ao décuplo das custas, sem prejuízo da responsabilidade por perdas e danos.

A litigância de má-fé se verifica quando uma das partes do processo age intencionalmente com deslealdade ou corrupção, alterando fatos, visando a fim ilegal, opondo resistência injustificada, apresentando recurso com fim proletário, etc.

A solidariedade mencionada acima significa que uma só pessoa pode ser acionada para responder pela dívida toda. Assim, tanto a associação autora quanto os diretores responsáveis podem ser cobrados pela dívida inteira individualmente. A obrigação será, desta forma, extinta, e nascerá uma pretensão do pagador de receber o correspondente à parcela dos outros devedores, o que lhe conferirá o direito a ajuizar uma ação de regresso em face deles.

Art. 84 – Satisfação das obrigações de fazer ou não fazer:

O art. 84 busca garantir que, nas ações de obrigação de fazer ou não fazer, seja sempre possível satisfazer o direito do autor – concedendo exatamente o pedido ou algo que tenha o mesmo efeito.

  Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

Exemplo de concessão de pedido equivalente: em ação proposta para impedir venda casada do produto de um determinado fornecedor, se for impossível citar tal fornecedor, é possível proibir que as lojas façam a venda, de forma alternativa e equivalente.

     § 1° A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.

Note que, conforme o parágrafo acima, uma forma excepcional de satisfação alternativa da obrigação de fazer é a conversão em um valor que cubra as perdas e danos causados pelo réu. No entanto, somente será isso possível se for opção do autor ou se o pedido original do autor for impossível de se cumprir (por exemplo, vaso raro que deve ser entregue pelo fornecedor estilhaçado por culpa deste).

Mas observe que:

     § 2° A indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287, do Código de Processo Civil).

Ou seja, mesmo com a conversão da obrigação em perdas e danos, será obrigatório o pagamento de multa prevista no contrato, se houver tal previsão.

A lei ainda dispõe que, em alguns casos de obrigação de fazer ou não fazer, é cabível a concessão de tutela antecipada liminar (adiantamento da satisfação do pedido, independentemente de contraditório):

        § 3° Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.

Os requisitos para a concessão da liminar são a existência de (i) probabilidade do direito pleiteado (fumus boni iuris) e (ii) perigo na demora, urgência de concessão do pedido (periculm in mora).

        § 4° O juiz poderá, na hipótese do § 3° ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.

A multa diária imposta àquele que não cumpre obrigação determinada em sentença ou outra decisão judicial recebe o nome de astreinte.

Por fim, em tal tipo de ação, o juiz poderá utilizar seu poder de polícia para forçar a obrigação:

        § 5° Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial.

Inversão do ônus da prova

O ônus da prova consiste no encargo de uma parte de provar os fatos e direitos que alega de maneira a desacreditar os fatos e direitos alegados pela outra parte. Sendo um encargo, se a parte incumbida do ônus da prova não apresentar provas hábeis para comprovar seu direito, prevalece o que foi alegado pela outra parte. No entanto, não sendo uma obrigação, o descumprimento do ônus da prova não acarretará extinção ou nulidade de qualquer ato processual.

O CPC, nos seus incisos I e II do art. 373, dita como deverá ser distribuído o ônus da prova:

Art. 373.  O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Ou seja, em regra, o ônus da prova pertence ao autor da ação que pleiteia um direito. O ônus apenas pertencerá ao réu para rebater os fatos e direitos provados com sucesso pelo autor, apresentando fatos que impediriam, mudariam ou extinguiriam tal direito.

Essa distribuição do ônus, que segue a mesma regra independentemente das partes envolvidas no processo, é chamada de distribuição estática do ônus da prova.

A inversão do ônus da prova consiste justamente em inverter a regra geral vista acima. Nela, o autor desincumbe-se do encargo de provar o que está alegando e passa a pertencer ao réu o ônus de provar que os fatos e direitos são diversos daqueles alegados pelo autor.

Essa inversão baseia-se na ideia de promover equidade ou igualdade material entre as partes de um processo quando se verifica que o autor é hipossuficiente e não tem as mesmas informações e poder de prova que o réu.

Em vários casos, a título de exemplo, o autor pede que haja a anulação de uma cobrança indevida: uma compra no cartão de crédito que não fez. Complicado provar que não houve a tal compra. Essa é considerada uma prova difícil ou impossível, também chamada de prova diabólica. O ônus dela recairá na parte ré.

Excepcionalmente, o §1º do art. 373 do CPC prevê, além dos mencionados tipos de distribuição do ônus, a possibilidade de inversão do ônus da prova sempre que o caso concreto revelar ser necessário. A ideia é que quem tiver mais facilidade de provar, prova.

§ 1o Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.

Essa modalidade de distribuição, que varia caso a caso, é chamada de teoria dinâmica de distribuição do ônus da prova. É prática mais comum na arbitragem.

No direito processual do consumidor, a regra estabelecida é de que a inversão do ônus da prova é um direito do consumidor (autor) sempre que sua alegação em petição inicial for verossímil ou quando este for verificado hipossuficiente.

Art. 6º. (...)
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências. (grifos inseridos)

Há quem defenda, no entanto, que deverá ser aplicada a teoria dinâmica das provas no direito consumerista. Segundo esta visão, a prova sempre cabe a quem possui mais facilidade de produzi-la.
 MAS ATENÇÃO! No caso de ação que discuta a veracidade ou correção de informação ou publicidade, o ônus da prova é sempre do fornecedor.

Art. 38. O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina.

Contratos Internacionais de Consumo

O que ocorre quando os contratos de consumo são celebrados no exterior ou com empresa estrangeira? De quem é a competência para decidir sobre conflitos em contratos internacionais?

O art. 22, inciso II, do CPC dispõe claramente que a justiça brasileira será competente para processar e julgar ações consumeristas se o consumidor possuir domicílio ou residência no Brasil.

No entanto, admite-se que o contrato decida qual será a lei aplicável, a brasileira ou a do país do fornecedor. No entanto, conforme precedentes jurisprudenciais, essa eleição de foro não será admitida se o fornecedor possuir sede de empresa do mesmo grupo econômico no Brasil, considerando-se tal prática abusiva.

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