Convenção Americana de Direitos Humanos

Introdução à Convenção Americana de Direitos Humanos

Noções gerais

A Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, é o tratado mais relevante do Sistema Interamericano. Baseia-se nos Pactos de Direitos Humanos de 1966 e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950. Em seu preâmbulo, a Convenção faz referência à Declaração Universal dos Direitos Humanos, à Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, à Carta da OEA e a instrumentos internacionais e regionais.

Foi celebrado em 1969 e internalizado no Brasil em 1992 com status supralegal, depois da reforma realizada pela Emenda Constitucional nº 45/2004.

O fato de não ter status de emenda constitucional é objeto de crítica de muitos autores.

O documento trata de direitos humanos de primeira e segunda dimensão, mas com profundidades diferentes. Grande parte do conteúdo aborda e aprofunda os direitos humanos de primeira dimensão.

O Pacto também foi responsável por reestruturar o Sistema Interamericano ao aumentar as atribuições da Comissão de Direitos Humanos e criar a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Como visto em aulas anteriores, o Pacto aumentou as competências da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Essa reestruturação se aplica exclusivamente aos países que assinaram o Pacto, o que significa que os países não integrantes se resumirão aos mecanismos originais da Comissão.

Além disso, outros pontos são relevantes sobre a Convenção:

  • Há cláusulas sobre a possibilidade de suspensão de direitos humanos e as situações em que esses direitos não podem ser suspensos;
  • A Convenção aborda os deveres das pessoas em relação à humanidade, à família e à comunidade;
  • A Convenção adota a teoria concepcionista quanto ao início da vida, ou seja, a pessoa tem direito à vida desde a concepção;
  • A Convenção estipula a prisão por dívida apenas no caso de obrigação alimentar, o que influenciou o Brasil a considerar ilícita a prisão civil do depositário infiel (Súmula Vinculante 25);
  • A Convenção ocasionou a discussão sobre a convencionalidade do delito de desacato no Brasil, pois, no ano 2000, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos aprovou enunciado dispondo que as “leis de desacato” atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação.

Subdivisão da Convenção Americana de Direitos Humanos

A Convenção está subdividida em 3 partes:

  1. Direitos e deveres: os direitos são garantidos por meio de ações judiciais. Embora não estejam expressamente previstas, podem ser recebidas pela Corte.
  2. Mecanismos de monitoramento: os mecanismos de fiscalização vistos na aula anterior são os mecanismos de monitoramento. São realizados inicialmente pela Comissão e, em casos mais graves, podem ser enviados para a Corte (serão levados para a Corte apenas para os signatários do Pacto de San José da Costa Rica).
  3. Disposições transitórias e aspectos formais para a entrada em vigor: faz referência a um trabalho mais burocrático, havendo enfoque no trabalho do Secretário-Geral da OEA.

Protocolos da Convenção Americana de Direitos Humanos

A Convenção Americana de Direitos Humanos é um tratado principal, mas é acompanhada de dois tratados acessórios, chamados de protocolos facultativos. Esses protocolos são tão exigíveis quanto a própria Convenção.

São esses protocolos:

  • Protocolo de San Salvador: corrige o desequilíbrio da Convenção no que diz respeito à previsão de direitos humanos de primeira e segunda dimensão. Permite que direitos econômicos, sociais e culturais sejam previstos de forma detalhada. Além disso, o protocolo traz cláusulas gerais aos Estados signatários, destacando-se o dever de os Estados garantirem efetividade progressiva dos direitos.
  • Protocolo de Assunção: buscou abolir a pena de morte, embora tenha previsto essa espécie de pena para crime de deserção em caso de guerra.

Noções gerais sobre os direitos previstos na Convenção Americana e os direitos da personalidade

Direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos

O tratado prevê os seguintes direitos:

  • Pessoa humana e personalidade jurídica;
  • Vida e integridade pessoal;
  • Vedação à escravidão e servidão;
  • Liberdade pessoal: ir, vir, residir, permanecer;
  • Garantias judiciais;
  • Proteção à família e à propriedade privada;
  • Casamento;
  • Proteção aos menores de idade;
  • Nacionalidade;
  • Vedação e expulsão de estrangeiros.

Pessoa humana e personalidade jurídica

A Convenção foi pensada, a princípio, apenas para pessoas físicas. A pessoa jurídica, por outro lado, não é protegida. Há duas exceções: comunidades indígenas e proteção para os sindicatos (nesse último caso, apenas para os Estados signatários do Protocolo facultativo de San Salvador). Esses dois grupos são vulneráveis, por isso a proteção se estendeu a eles.

A Convenção protege o direito à vida desde a concepção, enquanto o Código Civil brasileiro adota a teoria natalista, protegendo o direito à vida desde o nascimento, ainda que resguarde alguns direitos ao nascituro. A Convenção de direitos humanos está de acordo com o posicionamento do STJ sobre a matéria.

Em razão de ter adotado a teoria concepcionista, a Convenção não se manifesta sobre a permissão ou proibição do aborto.

Ainda sobre os direitos inerentes à pessoa humana e personalidade, é importante observar que a Convenção não vedou a pena de morte. De toda forma, os Estados não podem criar, recriar ou ampliar a pena de morte, permitindo apenas que seja mantida nos Estados em que já estava prevista. A vedação expressa da pena de morte só foi realizada no Protocolo de San Salvador, embora ainda assim seja permitida a pena de morte para o crime de deserção em caso de guerra.

Mesmo nesses casos em que se permite excepcionalmente a pena de morte, quatro requisitos devem ser observados para a efetiva aplicação da pena de morte:

  • Delitos graves;
  • Trânsito em julgado;
  • Permissão da anistia, indulto e comutação;
  • Não incidir sobre menores de 18 anos (na data do delito), maiores de 70 anos (na data do delito) e grávidas.

Por fim, há menção sobre o direito à integridade pessoal. Esse direito protege a manutenção física, moral e psíquica, inclusive dos transexuais, independentemente de cirurgia de transgenitalização. Em relação aos transexuais, a desnecessidade de cirurgia de transgenitalização é fruto de uma interpretação evolutiva. Atualmente o transexual é reconhecido por seu comportamento e não por qualquer intervenção em seu corpo.

Direitos à vida, à integridade pessoal, à liberdade pessoal, ao casamento, à nacionalidade, à vedação à escravidão/servidão e garantias judiciais

Vida e integridade pessoal

Os direitos à vida e à integridade pessoal têm quatro desdobramentos:

  • Vedação à tortura: esse direito é absoluto e não admite relativização. Não há ressalva para a aplicação da teoria da bomba-relógio (situações extremas, como torturar um terrorista para evitar uma explosão). Logo, não há autorização para aplicabilidade dessa teoria.
  • Intranscendência da pena: a pena tem caráter personalíssimo e não pode passar da pessoa do condenado. No entanto, os efeitos patrimoniais do crime – seja para responsabilidade civil, seja para restituição de bens e valores – podem ser estendidos aos sucessores.
  • Separação entre processados e condenados: no sistema penitenciário, deve haver separação entre presos processados e condenados.
  • Separação entre menores de idade e adultos: no sistema penitenciário, deve haver separação entre menores de idade e adultos, principalmente porque os menores cometem ato infracional previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente e os adultos cometem crime previsto no Código Penal.

Vedação à escravidão e servidão

No que diz respeito à vedação à escravidão e servidão, esse direito é absoluto, assim como a vedação à tortura.

O Brasil já foi condenado pela Corte no caso Fazenda Brasil Verde em razão do crime de condição análoga à escravidão.

É importante observar que, segundo a Convenção, não constituem trabalho forçado:

  • O trabalho na prisão;
  • O serviço militar;
  • O serviço imposto em caso de calamidade;
  • Obrigações cívicas.

Essas hipóteses de trabalho estão previstas como deveres, inclusive na Declaração Americana de Direitos Humanos. De toda forma, há necessidade de interpretar esses trabalhos de forma razoável e proporcional.

Liberdade pessoal

O direito à liberdade pessoal consiste na possibilidade de a pessoa ser livre para ir, vir, residir, entre outros. Somente a lei poderá restringir esse direito.

Esse direito apresenta quatro divisões:

  • Avisos de Miranda: toda pessoa acusada ou potencialmente acusada no processo penal pode ser avisada pelas autoridades competentes de que tem o direito de ficar em silêncio e de não se auto-incriminar.
  • Audiência de custódia: o objetivo da audiência é verificar os fatos ocorridos até aquele momento processual, tanto da atuação policial quanto das condutas do preso. Nessa audiência, o juiz analisará a prisão em flagrante, podendo convertê-la.
  • Duração razoável do processo: não significa processo rápido, mas processo que resguarde todas as garantias para as partes.
  • Vedação da prisão por dívida, salvo por dívida alimentar: a Convenção permite a prisão apenas por dívida alimentar. A partir dessa previsão, o depositário infiel não pode mais ser submetido à prisão no Brasil. Essa é a redação da Súmula Vinculante nº 25:

É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito.

Direito ao casamento

Segundo interpretação literal do Pacto, o direito ao casamento é restrito a homem e mulher. No entanto, a Corte Interamericana já realizou interpretação evolutiva para proteger os casais homoafetivos.

Direito à nacionalidade

Esse direito é interpretado pela doutrina como “metadireito”, justamente porque dá acesso a outros direitos. Trata-se de um direito-meio que garante o exercício de outros, como os direitos à previdência social e à constituição de empresas, entre outros.

Quanto ao direito ao asilo, a Convenção prevê apenas o asilo territorial, sem menção ao asilo diplomático. O Brasil prevê os dois tipos de asilo. O asilo territorial é aquele no qual a pessoa viaja para outro país para solicitar asilo. Por exemplo, um colombiano pede asilo na Bolívia. O asilo diplomático é aquele solicitado na embaixada de outro país, no território do país de origem da pessoa. No mesmo exemplo, o colombiano vai até a embaixada da Bolívia na Colômbia e solicita o asilo.

Garantias judiciais

O direito às garantias judiciais também apresenta subdivisão:

  • Princípio do juiz natural: o juiz competente é aquele que está previamente definido em lei para julgar o caso.
  • Princípio da presunção de inocência ou presunção de não culpabilidade: ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença condenatória.
  • Direitos dos acusados no processo penal: em especial, destaca-se o direito ao silêncio, o direito de não se exigir comportamentos positivos, os avisos de Miranda, entre outros.

O Brasil foi condenado por violar as garantias judiciais nos seguintes casos (sendo os mais conhecidos):

  • Favela Nova Brasília: o Brasil foi condenado por abuso da atuação policial na Favela Nova Brasília, localizada no Complexo do Alemão. O caso terminou com a morte de 13 homens da comunidade, 4 menores de idade, além de ter havido abuso sexual de 3 mulheres, sendo 2 menores de idade. Na reportagem do Jornal Réu Brasil é possível compreender detalhes do caso: https://reubrasil.jor.br/caso-favela-nova-brasilia-versus-brasil/

  • Gomes Lund (“Guerrilha do Araguaia”): caso que diz respeito também ao desaparecimento forçado de pessoas durante a ditadura militar em combate do Exército Brasileiro aos guerrilheiros do Araguaia. Nesse caso, a Corte proferiu sentença determinando que o Brasil adotasse, em prazo razoável, medidas necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas. Detalhes do caso estão no Jornal Réu Brasil: https://reubrasil.jor.br/julia-gomes-lund-e-outros-guerrilha-do-araguaia/

Abaixo, foto do grupo de guerrilheiros.

Grupo de guerrilheiros Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_Gomes_Lund

Abaixo, a foto do cacique Chicão:

Cacique Chicão Fonte: https://medium.com/aurora-coletivo-de-comunicação/19-anos-da-morte-do-cacique-chicão-índios-xucurus-protestam-f160cfdd2308

  • Vladimir Herzog: trata-se de um jornalista que foi preso nas dependências do DOI-CODI durante a ditadura militar, sem resposta clara a respeito do seu paradeiro depois da ditadura. Conforme a reportagem do Réu Brasil: https://reubrasil.jor.br/caso-herzog-e-outros-versus-brasil/ — “Vlado, como era conhecido, apresentou-se para depor na sede do DOI-CODI, em São Paulo, na manhã de 25 de outubro de 1975. Lá, foi detido, interrogado, torturado e acabou morto, no mesmo dia. A ditadura, recusando-se a admitir o assassinato, forjou um suicídio, legitimado por perícia técnica fraudulenta.” Na imagem a seguir, tem-se o suposto suicídio de Vladimir.

Vladimir Herzog Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Foto_de_Vladimir_Herzog_morto

Relevante pontuar que, desde 2004, com a Emenda Constitucional 45, o Brasil passou a contar com o incidente de deslocamento de competência, no art. 109, § 5º da Constituição Federal, para evitar situações de ineficiência interna do país na violação de direitos humanos. Assim, é possível que o Procurador-Geral da República solicite ao STJ o deslocamento de um processo para a Justiça Federal com o objetivo de assegurar os tratados internacionais de direitos humanos:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: [...] § 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

Suspensão dos direitos e garantias

Como já destacado em aula anterior, os direitos e garantias individuais previstos na Convenção podem ser suspensos.

Essa suspensão pode ocorrer:

  • Em caso de guerra;
  • Em caso de perigo público;
  • Em outra emergência que ameace a independência e segurança do Estado-parte.

Essa suspensão não pode ocorrer de forma ilimitada, principalmente porque há um rol de cláusulas pétreas convencionais. Essas cláusulas são denominadas convencionais justamente porque derivam de tratados internacionais e não da Constituição Federal. São essas cláusulas:

  • Personalidade jurídica;
  • Vida;
  • Integridade pessoal;
  • Não escravidão e servidão;
  • Irretroatividade e legalidade;
  • Liberdade de consciência e religião;
  • Proteção à família;
  • Nome;
  • Criança;
  • Nacionalidade;
  • Direitos políticos.

Esses direitos, portanto, não serão afetados em nenhuma situação.

A suspensão dos direitos deve ser bem fundamentada, interpretada restritivamente e ter os dias de início e fim comunicados ao Secretário da OEA que, por sua vez, comunicará o fato aos demais Estados.

Além disso, a suspensão não pode ser uma justificativa para gerar discriminação de gênero, raça, religião ou origem social, como já ocorreu ao longo da história.

A Convenção prevê a cláusula federal ou federativa, a qual não admite que um Estado federativo aponte uma entidade subnacional como responsável internacionalmente. Assim, a União de um Estado federativo não pode se esquivar de suas responsabilidades apontando a responsabilidade internacional de outro integrante da Federação. Por exemplo, se o Estado de Alagoas iniciar uma perseguição de pessoas negras e houver condenação do Brasil na Corte por violação de direitos humanos, a União não pode sustentar que a responsabilidade é do Estado de Alagoas, de modo que esse deveria ter sido condenado internacionalmente. É possível, todavia, o direito de regresso. Contudo, pela cláusula federal ou federativa é possível afirmar que a Corte não mantém relações com os entes subnacionais (municípios ou estados), mas apenas com o próprio signatário, ou seja, o Estado integrante.