Segurança Jurídica no Direito Administrativo: LINDB
Aspectos Gerais da LINDB
Inicialmente, o DL 4.657/42 era conhecido como Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (LICC), mas passou a se chamar Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) em 2010. Trata-se de uma lei que sempre conteve normas de sobredireito, ou seja, aquelas que estabelecem regras e parâmetros para vigência, interpretação, superação de lacunas, entre outros pontos.
Ao longo do tempo, sofreu as seguintes alterações:
- Lei 3.238/57: tratando de ato perfeito, coisa julgada e direito adquirido;
- Lei 12.376/10: transformando a LICC em LINDB;
- Lei 12.874/13: possibilidade de autoridades consulares brasileiras celebrarem a separação e o divórcio consensuais de brasileiros no exterior;
- Lei 13.655/18: normas sobre segurança jurídica e eficiência na interpretação e aplicação do direito público (arts. 20 a 30);
- Em 2019, o decreto 9.830 prestou-se a regular esse último trecho da LINDB.
Interpretação e aplicação de direito público
Avaliação de Impactos
Adentrando o conteúdo da LINDB que nos interessa, temos nos arts. 20 e 21 algumas orientações acerca da avaliação de impactos. Vejamos:
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
A partir da leitura do artigo, vemos que a decisão administrativa deve se basear em estudo de impacto, levando em consideração as consequências práticas, verificando como a decisão vai se desdobrar na realidade. Assim, o prognóstico (avaliação de futuro) passa a fazer parte da motivação, além do diagnóstico (avaliação prévia).
O decreto que regulamenta a LINDB dispõe que as consequências das quais o artigo trata são aquelas que o agente público pode vislumbrar, antever, prever. Além disso, a decisão administrativa depende sempre da razoabilidade, composta pelos elementos presentes no §único do art. 20 (necessidade, adequação, proporcionalidade).
Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.
Ademais, o art. 21 reforça a preocupação com a avaliação de impacto e insere a possibilidade de modulação de efeitos. Isso significa que as decisões de invalidação de atos podem ter seus efeitos restritos no tempo, começando a partir de uma determinada data, ou retroagir para anular outros atos decorrentes daquele invalidado, desde que não imponha ônus ou perdas excessivos.
Interpretação da Lei Administrativa
Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.
§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.
O art. 22 traz dispositivos acerca da interpretação das normas administrativas. Um primeiro ponto importante é a possibilidade de interpretações divergentes, desde que sejam fundadas pelas circunstâncias de cada caso. Assim, uma mesma norma administrativa pode ser lida de diferentes formas de acordo com a situação prática.
A interpretação acerca da legalidade das condutas deve levar em conta a realidade de gestão de cada entidade. Podemos utilizar como exemplo a Lei de Defesa dos Usuários de Serviços Públicos: a interpretação dos seus mandamentos é distinta para uma cidade pequena e para uma metrópole. A criação de diversos órgãos colegiados está prevista na lei (como ouvidorias e conselhos de usuários) é mais complicada de ser implementada em locais com recursos mais escassos.
Sanções Administrativas
Art. 22. [...]
§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.
§ 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.
Aqui são criados os critérios gerais e subsidiários de dosimetria para os mais diversos procedimentos sancionatórios. É um trecho muito útil, tendo em vista que nem todas as leis possuem esses critérios. Dessa forma, leis como a Lei de Defesa da Concorrência mantêm seus critérios de dosimetria, mas outras leis especiais que não abordam o assunto herdam a regra da LINDB.
Vale dar atenção especial ao §3º desse artigo. Apesar de buscar harmonizar o peso das sanções acumuladas, a redação é confusa e pode levar a interpretações erradas sobre reincidência e bis in idem. A interpretação mais coerente com o artigo é a de que uma segunda sanção administrativa sobre o mesmo fato e de mesma natureza que a primeira, será dosada levando em consideração a primeira punição (será mais branda).
Exemplo: conjunto de empresas que forma um cartel para agir em licitações públicas. A conduta está sujeita a aplicação da Lei de Defesa da Concorrência e da Lei Anticorrupção. Assim, após sofrer a sanção de multa pelo CADE, as empresas envolvidas ainda podem ser julgadas por corrupção, mas a multa será menor por conta da primeira sanção.
Regimes de Transição
Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.
O "regime de transição" é uma situação em que ocorre um impacto negativo em função de mudanças de interpretação que afetam situações jurídicas em curso. Assim, como a mudança de interpretação de determinada norma pode afetar de maneira negativa todo um conjunto de pessoas, utiliza-se um período gradual de transição para que seja possível se adaptar sem prejuízos.
Exemplo: o agente regulador X publica um regulamento para definir melhor os parâmetros de segurança de rede no setor de energia de determinado local, critério já previsto em lei. Com o passar do tempo, a interpretação do agente, que era mais branda, é enrijecida pela publicação de novo regulamento. Os particulares que são afetados com essa mudança, devem dispor de um tempo de adaptação à nova regra - esse período é o regime de transição.
Segundo o art. 7º do regulamento, o regime de transição deve incluir:
- Menção aos destinatários;
- Medidas de adaptação; e
- Prazo e modo para que o novo dever ou condicionamento seja cumprido.
De modo geral, as novas interpretações não devem retroagir. O art. 24 enfatiza essa ideia e apresenta o modo como as orientações da Administração devem ser observadas:
Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.
"Orientação" pode ser um direcionamento extraído de jurisprudência, práticas costumeiras reconhecidas, atos de caráter geral.
Celebração de Compromissos
Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.
§ 1º O compromisso referido no caput deste artigo:
I - buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais;
II - (VETADO)
III - não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral;
IV - deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.
Da leitura do artigo, podemos extrair requisitos do compromisso a ser celebrado pela Administração Pública:
- Razão de Interesse Público;
- Eventual consulta pública;
- Oitiva do órgão jurídico; e
- Respeito a conteúdo mínimo (prazo, sanções, etc.) e a vedações de conteúdo.
Trata-se de dispositivo importante da LINDB, visto que consolida e dá fundamento legal a utilização de instrumentos negociais pela Administração para a resolução de conflitos e irregularidades.
Medidas de Compensação
Art. 27. A decisão do processo, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, poderá impor compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos.
§ 1º A decisão sobre a compensação será motivada, ouvidas previamente as partes sobre seu cabimento, sua forma e, se for o caso, seu valor.
§ 2º Para prevenir ou regular a compensação, poderá ser celebrado compromisso processual entre os envolvidos.
Nas situações descritas pelo artigo (benefícios indevidos e prejuízos anormais), o particular pode receber ou devolver recursos, evitando ações judiciais desnecessárias. Para tanto, deve cumprir os seguintes requisitos:
- Comprovação do benefício ou prejuízo;
- Motivação da conveniência;
- Oitiva dos interessados sobre a forma, valor e outros aspectos da compensação.
Responsabilidade do agente público
LINDB
Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.
Regulamento
Art. 12. O agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo, direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções.
§ 1º Considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.
§ 3º O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização, exceto se comprovado o dolo ou o erro grosseiro do agente público.
§ 4º A complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público serão consideradas em eventual responsabilização do agente público.
O artigo busca dar segurança jurídica ao agente público na elaboração de decisões administrativas ou atos opinativos, evitando que o simples exercício de suas funções enseje ações de improbidade administrativa ou responsabilidade civil.
Reforço da Previsibilidade
Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas.
Parágrafo único. Os instrumentos previstos no caput deste artigo terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão.
Aqui, o dispositivo busca estender o caráter vinculante dos regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas, criando na Administração Pública uma vinculação maior que a existente no próprio Judiciário. Apesar da redação, entende-se que apenas as consultas em casos concretos são vinculantes, visto que consultas sobre assuntos abstratos servem apenas como orientação geral.
No âmbito da União, o parecer do AGU publicado no Diário Oficial vincula todos os órgãos e entes federais (vide art. 20 do regulamento e LC 73/93).