Publicado em: 05/11/2020 por Inara Alves Pinto da Silva


Um assunto que voltou a mobilizar diversas pessoas nas redes sociais, é o caso da Mariana Ferrer que alegou ser vítima de estupro cometido pelo empresário André de Camargo Aranha. O fato ocorreu no final de 2018 em uma boate de Florianópolis. 

O caso, levado a julgamento, foi concluído no início de setembro de 2020. O réu foi acusado por estupro de vulnerável, ou seja, de que praticou "conjunção carnal ou ato libidinoso" com Mariana sem que ela fosse capaz de oferecer resistência. A conclusão do promotor responsável pelo caso foi de que, mesmo que seja certo que André tenha praticado atos sexuais, não há provas suficientes que comprovem a vulnerabilidade da vítima. 

Existe a prova de que houve relação sexual e o MP e o juiz admitem isso, portanto toda a discussão do processo girou em torno da questão sobre a vulnerabilidade da vítima no momento do ato. 

O juiz de primeira instância, ao analisar provas e relatos de testemunhas, acatou o parecer do Ministério Público e entendeu que as provas apresentadas não eram suficientes para comprovar a vulnerabilidade da jovem. Então, o empresário foi absolvido.

É importante ter em mente que isso não significa que o crime não tenha ocorrido, mas, para a Justiça, não há provas suficientes para condenar o réu.

Imagens e cenas da audiência foram disponibilizadas no site The Intercept Brasil, que chocaram e mobilizaram milhares de pessoas. No trecho apresentado, o advogado da defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho, excedeu os limites éticos e apresentou teses desnecessárias em sua abordagem, constrangendo e humilhando Mariana. Foram mostradas fotos da vítima que eram irrelevantes para o caso, sem apresentar qualquer base ou argumento jurídico.

O processo corre em segredo de justiça, mas alguns trechos dos autos foram disponibilizados. A análise jurídica do Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC), apresentou, dentre outros fundamentos, o seguinte: 

[...] O dolo somente se completa com a presença simultânea da consciência e da vontade de todos os elementos constitutivos do tipo penal. Com efeito, quando processo intelectual-volitivo não abrange qualquer dos requisitos da ação descrita na lei, não se pode falar em dolo, configurando-se o erro de tipo, e sem dolo não há crime, ante a ausência de previsão da modalidade culposa”. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito. Volume IV. 13 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, E-book., p. 187-188). 

Para o MP-SC, como o réu não tinha como saber as condições da jovem para consentir com o ato, ele não agiu com a intenção de violentá-la. 

E de onde surgiu a tese do estupro culposo?

Em nenhum momento foi utilizado o termo “estupro culposo” no fundamento jurídico desenvolvido pelo promotor de justiça e nem nas 51 páginas da sentença.

A expressão "estupro culposo" foi utilizada pelo site The Intercept, que justificou dizendo que a utilizou para "resumir o caso e explicá-lo para o público leigo", tendo em vista que o promotor explica em sua argumentação que "não há qualquer indicação nos autos acerca do dolo [...], não se afigurando razoável presumir que [Aranha] soubesse ou que deveria saber que a vítima não desejava a relação".

Como o crime de estupro de vulnerável não admite a modalidade culposa, sendo necessária a presença da vontade (da intenção) do agente para que o crime exista, o site The Intercept criou esse termo "estupro culposo", que não possui qualquer respaldo na legislação brasileira, para explicar essa situação. 

Dolo e Culpa

Para entender melhor a situação, é importante analisar o art. 18 do Código Penal que define o crime doloso e o crime culposo. Vejamos: 

Art. 18 - Diz-se o crime:

Crime doloso

I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; 

Crime culposo

II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.

De maneira geral, o crime doloso ocorre quando há a intenção de praticar a conduta delituosa, já o crime culposo é aquele em que o agente não tem essa intenção e o resultado ocorre por imprudência, negligência ou imperícia.

Estupro 

O art. 213 do Código Penal define o crime de estupro da seguinte forma: 

Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: 

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. 

§ 1°  Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: 

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.            

§ 2°  Se da conduta resulta morte:             
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. 

Como podemos observar, é certo que o elemento subjetivo do estupro é o dolo, ou seja, trata-se de um crime doloso. Não há, portanto, previsão de modalidade culposa nesse tipo de delito. 

No crime de estupro, o agente tem a vontade livre e consciente de praticá-lo, não levando em consideração a vontade da vítima. 

Em relação ao estupro de vulnerável (tipo penal arguido no caso de Mari Ferrer), o art. 217-A traz a seguinte redação: 

Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:  

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. 

§ 1°  Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Esse delito ocorre quando a vítima é menor de 14 anos ou quando ela não pode oferecer resistência. Isso quer dizer que, para o agente ser condenado, ele deve ter consciência de que a vítima é ou está vulnerável.

Tese jurídica 

No caso exposto no início, o Ministério Público considerou a absolvição do réu sustentando a existência da atipicidade por erro do tipo, com fundamento no art. 20 do Código Penal: 

Art. 20. O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. 

O erro do tipo ocorre quando o agente tem uma falsa acepção sobre algum dos elementos que configuram o crime e, portanto, não tem o conhecimento de que está adotando uma conduta criminosa: é ausência de dolo. 

De acordo com os trechos disponibilizados, foi apresentado o seguinte fundamento: 

A primeira espécie do erro está prevista no caput do art. 20 do Código Penal [...]. Trata-se do erro de tipo, que denominaremos de erro de tipo incriminador, pois recai sobre os elementos de uma norma incriminadora. Nessa espécie, o agente sem saber pratica uma conduta que se enquadra no tipo penal. É uma conduta onde há vontade, mas não há plena consciência (portanto, falta de dolo). 

E ainda: 

Especificamente quanto ao crime de estupro de vulnerável, embora em relação a outra causa de vulnerabilidade, ensina Guilher de Souza Nucci: 

“Além do debate acerca da vulnerabilidade [...], é preciso considerar a hipótese de ocorrência do erro de tipo [...], a confusão com o elemento do tipo menor de 14 anos pode eliminar o dolo [...]".  

Então, o MP-SC, faz o seguinte questionamento: 

Se a confusão acerca da idade pode eliminar o dolo, por que não aplicar-se a mesma interpretação com aquele que mantém relação com a pessoa maior de idade, cuja suposta incapacidade não é do seu conhecimento?

Diante dessa breve exposição, nota-se que as fundamentações utilizadas demonstram que, como não houve o dolo, e não há a modalidade culposa no crime de estupro, o fato é considerado atípico. 

É importante destacar que mesmo com a exclusão do dolo, é possível a punição por culpa se o tipo penal permitir. Então, pelo fato do crime de estupro não comportar a modalidade culposa, incide a atipicidade. Diante disso, o réu foi absolvido. 

Na conclusão, o juiz também fundamentou a absolvição do réu, alegando que as provas obtidas não eram suficientes para comprovar o estado de vulnerabilidade da vítima, pois o exame toxicológico não demonstrou que a vítima consumiu álcool ou drogas.   

Diante da grande repercussão, várias medidas estão sendo tomadas. O CNJ irá avaliar a conduta do juiz e do promotor. O Senado aprovou uma nota de repúdio contra o advogado de defesa, o juiz e o promotor. E a senadora Rose de Freitas (Procuradora da Mulher do Senado) afirmou ainda que, pedirá a anulação da sentença.