Diretivas Antecipadas de Vontade - Material Complementar

Bioética e Biodireito

O que é Bioética?

É o estudo transdisciplinar entre Ciências Biológicas, Ciências da Saúde, Filosofia e Direito. Trata-se da ética da vida, um estudo sobre os limites e as finalidades da intervenção humana sobre a vida.

A Bioética pode ser dividida em duas fases: os conflitos éticos emergentes e os persistentes.

Os conflitos éticos emergentes surgiram com as transformações profundas na sociedade trazidas pelo emprego de tecnologia (tecnologia em saúde, reprodução assistida, eugenia).

Já os conflitos éticos persistentes são aqueles que acompanham o ser humano desde os seus primórdios (aborto, direito de morrer, eutanásia).

Biodireito

Área que trata das relações jurídicas que envolvem o Direito e os avanços científicos ligados à Medicina e à Biotecnologia. É o Biodireito que promove a positivação das regras ou normas bioéticas.

Exemplo: proibição de condutas médico-científicas com aplicação de sanções.

Histórico da Bioética

Vamos analisar alguns pontos na história que foram importantes para o surgimento e para a evolução da Bioética.

1962 - Comitê de Seattle

Neste período houve a invenção da máquina de hemodiálise, provocando uma grande revolução no tratamento de pessoas com a função renal debilitada. Porém, como a demanda era muito grande, não conseguiram atender todos os pacientes.

Era necessário decidir quem receberia o tratamento e quem morreria. Dessa forma foi instaurado o Comitê de Seattle, formado por profissionais de saúde e também por pessoas leigas, onde foram criados critérios para fazer tal seleção.

1966 - Métodos antiéticos nas pesquisas

Harry Beecher, professor de anestesiologia de Harvard, demonstrou que em diversas pesquisas já realizadas por outros profissionais existiam práticas inadequadas ou antiéticas.

Parte das pesquisas utilizavam pessoas consideradas de "segunda classe" (ex: prisioneiros) e outras injetavam células cancerígenas em idosos. 

Tendo isso em vista, fortaleceu-se a necessidade de criação de mecanismos de controle em pesquisas e tratamentos.

1967 - Primeiro Transplante de Coração

O cirurgião sul-africano Christian Barnard foi o primeiro a conseguir o feito. Isso gerou uma polêmica porque o coração transplantado era de um paciente que sofreu morte cerebral e não cardiorrespiratória.

Cresce então o debate sobre quais são os critérios de morte que devem ser utilizados e se a opção por abreviar a vida de um paciente em prol da sobrevivência de outro é uma escolha ética.

Como exemplo em nosso ordenamento, a Lei 9.434/97 dispôs sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Nesta normativa, existe a previsão da morte encefálica como marco para a possibilidade de doação de órgãos.

1932 ~1972 - Caso Tuskegee

Caso de grande repercussão em que o governo estadunidense realizou, durante 40 anos, uma pesquisa sobre a evolução natural da sífilis - sem qualquer tipo de tratamento.

Os voluntários, todos pessoas negras, acreditavam que estavam recebendo tratamento, quando na verdade estavam apenas desenvolvendo a doença. Dos 399 homens infectados, apenas 74 estavam vivos ao final do estudo.

Esta situação foi reconhecida como um extermínio daquelas pessoas, visto que já existia um tratamento com antibióticos na época. Para mais informações sobre este experimento ilegal e que ficou marcado como um ponto de virada na regulação da bioética, clique aqui.

Princípios Fundamentais da Bioética

Princípio da Beneficência

Os profissionais da saúde só podem usar o tratamento para o bem do paciente. Dessa forma, deve-se maximizar os benefícios e minimizar ou extinguir os danos.

Princípio da não-maleficência

Contém a obrigação de não acarretar dano intencional ao paciente. Trata-se da ideia de que a obrigação primária do profissional de saúde é não prejudicar.

Além disso, entende-se que o procedimento que favorece o paciente do ponto de vista técnico nunca deve ser feito sem o consentimento dele.

Parte da doutrina entende que este princípio está incluso no princípio da beneficência.

Princípio da Autonomia

Valorização da vontade do paciente e de seus representantes, levando-se em conta seus valores morais, religiosos e suas convicções íntimas.

Desse princípio também decorre a necessidade de consentimento livre e informado do paciente sobre os procedimentos médicos.

Princípio da Justiça

Exige-se a imparcialidade dos profissionais da saúde, buscando a distribuição dos riscos e benefícios da prática médica, evitando-se a discriminação.

Princípios do Biodireito

Princípio da Precaução

Trata-se de uma forma de proteção do paciente contra riscos desconhecidos. Demanda que os profissionais da saúde ajam com cautela e de modo preventivo.

A ameaça pela incerteza pode ser irreversível, então deve ser afastada a prática do ato antes que ocorra o dano. Por esse motivo, testes clínicos e de novas técnicas só podem ser realizados em humanos após uma comprovação da redução dos riscos de dano, enquadrando-se no que chamamos de "risco aceitável".

Princípio da Autonomia Privada

Deve existir autonomia do paciente para as decisões sobre os tratamentos médicos e experimentação científica aos quais será submetido.

As decisões clínicas devem ser tomadas em conjunto na relação médico-paciente.

Princípio da Responsabilidade

Necessidade de reparação ou minimização dos danos causados devido à prática do ato pelo profissional de saúde. Trata-se da compreensão dos atos prejudiciais e da assunção de suas consequências.

Princípio da Dignidade

É a garantia do pleno desenvolvimento de vários aspectos da pessoa humana, devendo sempre ser observado nas práticas médicas.

Visa a proteção da vida humana e encontra-se fundamentado pelo art. 1º, inciso III, da CF:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana;

Terminalidade da Vida e Direito à Morte Digna

Terminalidade da vida

Questão interessante e muito debatida ao longo do tempo é a terminalidade da vida: Quando uma pessoa pode ser considerada morta? Quando um paciente está efetivamente em estado terminal?

De acordo com a doutrina majoritária, temos que o paciente terminal é aquele cuja condição de insanabilidade é irreversível. Em outras palavras, são pacientes que apresentam uma condição de saúde que leva ao mesmo resultado (morte) diante de tratamento ou sem ele.

Nestes casos, o paciente apresenta uma alta probabilidade de morrer em tempo relativamente curto (geralmente até 6 meses). O estágio da doença ou enfermidade está muito avançado para reverter a situação e evitar o falecimento.

Direito Fundamental à Morte Digna

O direito à morte digna deriva justamente da tutela da vida digna prevista constitucionalmente. Ora, se o ser humano tem o direito de viver sob a égide da dignidade é justo pensar que a sua morte - marco final do bem jurídico "vida" - deva gozar do mesmo respeito.

Logo, entende-se que a finalização da vida não pode ser carregada de um tratamento desumano, em um estado que não seria dispensado para qualquer outra pessoa. É aqui que reside a ideia de que uma morte digna é preferível a uma vida indigna.

Neste sentido, destacam-se os princípios bioéticos da autonomia privada, da beneficência e da não maleficência. O paciente tem direito de participar das decisões clínicas sobre sua saúde e não pode ser submetido a tratamento ou cirurgia contra sua vontade.

Diretivas Antecipadas de Vontade - Introdução

Conceito

As Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) são um gênero de documentos de manifestação de vontade para cuidados e tratamentos médicos. Elas foram criadas na década de 1960 nos EUA e devem ser aplicadas apenas em casos de terminalidade.

Portanto, a expressão da vontade pode ser realizada a qualquer momento, mas ela só será cumprida diante de um estado terminal do paciente. A eficácia está condicionada ao caso de terminalidade.

São duas as espécies de DAV:

  • Procuração para cuidados de saúde;
  • Testamento vital.

Quem pode fazer?

As DAV são consideradas negócios jurídicos e, portanto, só podem ser celebradas por sujeitos capazes.

É importante entender que o critério jurídico de capacidade deve ser complementado com o critério médico-científico de discernimento. Portanto, procede-se a uma averiguação em concreto da capacidade para consentir antes de efetivar a DAV.

Os relativamente incapazes podem elaboras as DAV mesmo que curatelados. Excetuam-se dessa regra os menores púberes, situação em que deve haver autorização judicial para proferir a diretiva antecipada de vontade.

As DAV são consideradas negócios jurídicos unilaterais e podem ser revogadas ou alteradas a qualquer momento pelo autor - desde que esteja ciente de seus atos.

Procuração para Cuidados de Saúde

Conceito

Também conhecida como "mandato duradouro", a procuração para cuidados de saúde é um documento no qual o paciente designa uma pessoa de sua confiança para tomar decisões em seu lugar, quando não puder fazê-lo.

Poderes/Deveres do Procurador

Deve ser consultado pelos médicos quando for necessário tomar alguma decisão sobre os cuidados com a saúde do outorgante (aquele que escreve a procuração). Além disso, o procurador deve sempre decidir com base na vontade do paciente.

Incumbe ao procurador também o esclarecimento de dúvidas acerca do testamento vital. Vale lembrar que é possível fazer um testamento vital sem nomear um procurador de saúde.

Testamento Vital 

Conceito

Primeiramente é importante notar que a nomenclatura deste instituto é um tanto curiosa, visto que o testamento no direito civil faz parte do âmbito do direito sucessório. O chamado "testamento vital", como veremos adiante, é um instrumento que propaga os seus efeitos já em vida - no momento em que o testador já não pode exprimir sua vontade, diferenciando-se completamente das questões patrimoniais que envolvem o testamento sucessório.

O testamento vital é um documento no qual o paciente define os cuidados, os tratamentos e os procedimentos médicos que deseja ou não para si mesmo, diante de um diagnóstico de incurabilidade.

Elaboração

A elaboração do testamento vital geralmente é feita com o auxílio de um profissional da saúde. O ideal é que as disposições sejam compreensíveis e detalhadas, evitando brechas para interpretações erradas.

Portanto, o testador define aspectos como o estado clínico em que a sua vontade deve ser aplicada e quais os cuidados específicos que ele aceita.

Formas de Elaboração

O testamento vital pode ser declarado de diferentes formas:

  • Declaração por Escritura Pública;
  • Declaração por instrumento particular, assinado e de preferência com firma reconhecida;
  • Declaração feita ao médico assistente, registrada no prontuário e com assinatura do paciente (vide R.CFM 1995/2012);
  • Manifestação de vontade declarada aos familiares e/ou amigos, que servirão de testemunhas dessa vontade.

Registro do Testamento Vital

Existe uma discussão acerca do registro do testamento vital: como conferir maior segurança jurídica?

É importante conferir publicidade ao testamento vital para ter maior segurança de que as vontades da pessoa em situação de terminalidade de vida sejam cumpridas.

O Registro Nacional de Testamento Vital (RENTEV) é um instituto que ainda não tomou grandes proporções e está em fase experimental.

Já a Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados (CENSEC) é considerada uma forma de registro mais acessível em nível nacional para os testamentos realizados por meio de escritura pública.

Validade Jurídica do Testamento Vital 

Introdução

Após entender as formas de elaboração do testamento vital, é necessário entender como este instituto se torna válido e pode produzir efeitos.

A Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 1995/2012 é utilizada como embasamento ético e jurídico para essa questão do testamento vital. Aqui pode-se encontrar normas deontológicas que regulam a profissão médica e algumas disposições sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes.

Neste diploma estão algumas normas que reconhecem a importância da vontade do paciente para a suspensão de tratamentos fúteis, mas não são suficientes para abordar efetivamente os problemas práticos atinentes a esse assunto tão sensível na relação médico-paciente.

Entendimento doutrinário

Quanto aos profissionais do Direito, existe um consenso acerca das diretivas antecipadas de vontade, sobretudo o testamento vital. O Enunciado 528 da V Jornada de Direito Civil consolida o entendimento:

É válida a declaração de vontade, expressa em documento autêntico, também chamado 'testamento vital, em que a pessoa estabelece disposições sobre que tipo de tratamento de saúde ou de não tratamento deseja, para o caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade.

Legislação

Ainda não há legislação específica sobre o tema, mas existe um projeto de lei tramitando no senado, de autoria do Senador Lasier Martins (PLS nº 149/2018).

O projeto dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade relacionadas a tratamentos de saúde. Estabelece também que toda pessoa maior é capaz de declarar seu interesse de se submeter ou não a tratamentos de saúde futuros, caso se encontra em fase terminal ou seja acometida de doença grave ou incurável.

Entendimento Jurisprudencial

Existem alguns julgados que abordam essa parte da bioética, mas acabam por se equivocar com os institutos. Vejamos alguns trechos do julgado de exemplo:

No caso em questão, o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se negou à amputação, preferindo, conforme o laudo psicológico, morrer para "aliviar o sofrimento".

Este caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural.

Nas circunstâncias, a fim de preservar o médido de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente fez o "testamento vital", que figura na resolução 1995/2012 do CFM.

(TJ-RS, AC nº 70054988266, 1ª Cív., J. 20/11/2013)

O equívoco do julgado citado está em definir a atitude do paciente como um testamento vital. Isso porque o paciente não estava em um estado terminal de vida, mas sim diante de uma situação de chance real de vida ao passar pelo procedimento.

Portanto, o correto aqui seria realizar a operação, buscando a manutenção da vida do paciente.

Conteúdo das Diretivas Antecipadas de Vontade

Objeto das DAV

A validade das diretivas depende do seu objeto, ou seja, daquilo que é expressado como última vontade do autor. Essa validade, portante, é aferida de acordo com a licitude daquilo que se expressou.

Eutanásia

É a facilitação da morte pelos profissionais de saúde para garantir um falecimento digno ("boa morte"). É aplicada por meio de técnicas que permitem a ocorrência da morte de forma menos dolorosa quanto possível ao paciente.

Em resumo, é uma morte voluntária, observada a vontade do paciente.

A eutanásia não pode ser objeto de uma DAV de acordo com o nosso ordenamento jurídico, visto que enquadra-se como homicídio (descrito no código penal). Dessa forma, uma DAV que tenha por objeto a eutanásia é inválida.

Suicídio Assistido

A morte em decorrência do suicídio assistido não depende diretamente de ação de terceiro, mas sim de uma ação do próprio paciente.

Esta ação pode ter sido orientada, auxiliada ou apenas observada por terceiro. Também não pode ser objeto de DAV, visto que configura o crime de "Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação".

Distanásia

Também conhecida como obstinação terapêutica ou futilidade médica.

Trata-se do prolongamento do processo de morte por meio artificial - morte lenta, ansiosa e com muito sofrimento.

É uma prática altamente criticada no meio médico, visto que o padrão de conduta é buscar o máximo de dignidade para o paciente em seu momento de morte.

O paciente pode desejar esse procedimento, mas o profissional pode mostrar objeção e encaminhá-lo a outro profissional.

Interessante dizer que o custeio da distanásia é por conta do paciente, não sendo possível cobrar a conta da operadora de saúde ou do SUS.

Ortotanásia

Significa "morte no tempo certo". Trata-se do não prolongamento do processo de morte de maneira artificial.

Aqui o objetivo é não gerar ao paciente um sofrimento físico, psicológico e espiritual com o emprego de técnicas terapêuticas inúteis.

Neste caso, é suspenso o suporte vital do paciente, mas todos os tratamentos paliativos devem continuar, garantindo o maior conforto e bem-estar possível.

Pode ser objeto das Diretivas antecipadas de vontade, sendo inclusive o principal alvo desses instrumentos.

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